A ditadura matou, torturou, dilacerou, por Andréa Santos

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Em busca de destruir o minotauro que ameaçava a existência de todos, Teseu se desafiou a percorrer o labirinto e nunca mais retornar ao local de partida. Ariadne pôs-se na tarefa de coser um fio e o entregou a Teseu. Enquanto percorria o labirinto, o fio de Ariadne manteria o elo entre o passado e o presente, a memória que seria evocada diariamente, o testemunho de que era preciso lembrar do que vivera e deixara em terras firmes.

Lembrar para não esquecer. Esse deve ser o nosso exercício diário, pois o ato de lembrar nos impele a combater os discursos retóricos que só servem para aqueles que assumem o Estado a construir narrativas que lhe são convenientes, e sobretudo a mentir, enganar, tripudiar. É o que vivemos no atual momento. A decisão do presidente da República, Jair Bolsonaro, de autorizar que as Forças Armadas comemorem a ditadura civil-militar de 1964 é uma afronta à memória histórica e, sobretudo, à vida de homens e mulheres que foram torturados e seviciados. É uma agressão aos filhos de pais e mães desaparecidos e assassinados pela ditadura. É uma violação a nossa história, ato que deve ser repudiado veementemente pelos que têm respeito à vida humana.

Como tem sido uma prática comum desde a campanha eleitoral, o presidente e alguns de seus correligionários querem reescrever a história a respeito da ditadura militar, recuperando a trajetória de torturadores. Isso – por si – já deveria ser repudiado por todos, pois nenhuma disputa de poder deve negar o princípio civilizatório do dever à verdade histórica.

É preciso puxar o fio de Ariadne e trazer o passado ao presente para lembrar de cidadãos que foram presos injustamente. Aqui, em Juazeiro, a partir de 31 de março de 1964, tivemos a caça aos que eram chamados de subversivos. Foi assim que as forças de segurança local e do Estado trataram o mestre Osvaldo Gomes, marceneiro e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Fluviais e Marítimos, o alfaiate Antônio Bigodinho, os irmãos trabalhadores fluviários José e Benedito Pereira; o professor de matemática, Chico Romão; o vereador e radialista Jorge Gomes. Assim como ocorreu em Juazeiro, aconteceu em todo o país. Era preciso prender aquele que se julgava “inimigo interno da nação”, invariavelmente todo aquele que se identificava com a luta por direitos sociais.

Em comum, todos foram acusados de propagar ideias comunistas e de se organizarem em associações de assistência ao trabalhador. Uma retórica discursiva que ajudou as elites nacionais e militares a ficarem 21 anos no poder. Mestre Osvaldo ficou 18 meses preso, afastado da família e renegado socialmente. A Comissão da Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça, a partir do ano de 1995, comprovou que ele foi preso, simplesmente, por ser dirigente sindical. Foi preso porque, em uma ditadura, o direito à verdade deixa de existir.

É o que estamos presenciando com essa decisão de celebrar os 55 anos da ditadura civil-militar. Querem que a gente esqueça que pessoas foram mortas, assassinadas. Querem sobretudo nos calar. Mas é preciso insistir em narrar os fatos e acontecimentos históricos tal como eles foram para que as gerações futuras nunca se esqueçam que mulheres e homens foram presos, torturados, mortos. É preciso assumir o compromisso de não compactuar com mortes e desaparecimentos. O Estado brasileiro assumiu essas mortes e desaparecimentos. Não há de haver nenhum Presidente da República que nos faça esquecer. Não há de haver nenhum professor em sala de aula reproduzindo mentiras. Façamos o exercício de não nos perdemos no labirinto da mentira e das falsas celebrações. É preciso retomar o fio que nos conecta ao passado, a memória e a história de vida de cada um que morreu ou foi torturado pela ditadura civil-militar.

Andréa Cristiana Santos é jornalista e professora da Uneb/Juazeiro

3 COMENTÁRIOS

  1. A vida tal qual ela foi é a que devemos recordar para contar às novas gerações. Isso é lembrar para não esquecer a verdade histórica.

  2. O presente texto possibilita gerar uma reflexão profunda sobre o momento atual da politica no Brasil. Um pensar sobre os acontecimentos ocorridos durante golpe militar de 64 e a subversão dos valores do novo governo. Diante dessa realidade, o que é o bem, já não está mais escrito em lugar algum. O texto conta um pouco da historia, sobretudo, como o golpe militar atingiu grandes dimensões, esmagando a população por todos os lados e cantos do Brasil.
    O paradoxo de Teseu foi muito bem colocado pela autora, ele mostra que precisamos resgatar a historia, aprender com os erros do passado, permitindo a construção de uma dialética evolutiva, antagônica, ao retrocesso histórico, politica e cultural. A chancela do presidente da republica, que autorizar as forças armadas do país a comemorar o desprezível golpe, ocorrido durante a ditadura militar de 1964 é uma afronta ao povo brasileiro, uma tentativa de apagar atributos, aos culpados pelas mortes de filhos, pais e mães, entes queridos dessa nação.

    Dr. Andréa Santos retoma o assunto, sob o alhar de alguns brasileiros preocupados mais em manter uma ideologia ruim, do que os valores que devem ser preservados.
    Foram guardados na memoria povo brasileiro, ao longo do tempo, velhas recordações de uma passado sombrio. Elegeram um presidente, que desconhece a historia do país, que exalta os torturadores do regime militar como seus heróis, desconhece a verdade sobre os fatos, tentando conduzir o povo brasileiro, ao inferno.

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