O admirável (e estranho) mundo novo por Ivânia Freitas

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Ainda lembro de como fiquei mexida e assustada quando, adolescente, li o livro de Aldous Huxley “O admirável mundo novo” (publicado em 1932). O livro distópico de um futuro apresentava pessoas condicionadas biologicamente e psicologicamente a viverem em uma sociedade ausente de princípios religiosos e éticos, manipulada por uma ciência voltada à produção artificial e manutenção de uma sociedade sem autonomia para pensar, onde as informações eram sublimadas para que as pessoas não fossem capazes de contestar a ordem vigente.
Muito bem escrito, provocava inúmeras indagações sobre como seriam os anos 2000, 2020, 2040… Será que estaríamos vivos? Seria o mundo assim como desenhado por Huxley? Seria pior? Melhor?
De repente, estamos nós, em 2016 e embora ainda não tenhamos carros voadores e as pessoas continuem sendo ‘feitas’, na sua maioria, pela relação sexual física direta, concreta, pele a pele, o ‘mundo novo’ chegou. Não sem a utopia marcante da obra de Huxley, mas, muito, muito próximo da apatia social por ele desenhada.

‘O admirável mundo novo’ se revelou com o avanço veloz, intenso e estimulante da ciência, sobretudo nas áreas das tecnologias da informação e comunicação, com destaque especial ao computador e à internet que alteraram pra sempre nossos modos de viver.

Tudo se transformou radicalmente. As cartas já não demoram a chegar (elas agora se chamam e-mail); não se gasta mais dez dias para sair de qualquer lugar do Nordeste para São Paulo, pois o percurso leva apenas algumas horas; podemos conhecer o mundo inteiro pela tela da TV, do pc, do celular; acessar informações dos mais diversos cantos do mundo em apenas um clique. Podemos falar em tempo real com qualquer pessoa (e vê-las) de qualquer parte do mundo sem sair do lugar e até andar sobre pernas artificiais.

Temos a possibilidade de ver, acessar, conhecer, o que jamais sonhamos ser possível e sobre qualquer assunto que nos interesse; já não passamos horas e horas escrevendo receitas nos caderninhos, podemos ter acesso a elas em centenas e milhares pela internet.
Já não precisamos também, pausar a fita cassete várias vezes ou segurar a agulha do disco para copiar a letra das nossas canções favoritas, elas também estão na internet inteirinhas e bastam um “ctrl c, ctrl v” e pronto! Também não se precisa mais de um rádio para ouvir as músicas, nem ‘estúdio’ para gravá-las ou sequer de instrumentos reais ou de pessoas reais… para tocá-las ou cantá-las.

É, parece que esse mundo novo é também um mundo estranho e cada dia mais estranho. O futuro chegou e tudo o que poderia nos aproximar rapidamente de um ‘futuro’ onde a vida seria melhor, mais prática, mais tudo, não parece ser bem assim… É o mundo novo marcado por contradições que nos desafiam a permanecermos humanos e a desconfiar se de fato, ainda o somos.
É o mundo do encurtamento das fronteiras, das distancias e que é, ao mesmo tempo, do isolamento humano sem limites.

É o mundo onde todos podem aprender rapidamente novas línguas e se comunicar com pontos longínquos. Contudo, é paradoxalmente,o mundo do pouco diálogo, da dificuldade de entendimento; das graves posturas de intolerância de todas as ordens e em todos os cantos.
É o mundo onde passou a ser estranho tocar, sentir e abraçar aqueles a quem você chama de ‘amigos’. O mundo no qual, você tem dezenas, centenas e milhares deles nas redes sociais, mas, sequer os conhece… Você até se bate com eles na rua, mas, eles nem olham, não dão bom dia, não cumprimentam (nem por educação).
É o mundo do narcisismo; de um vazio imenso de alma que faz com que estejamos o tempo todo precisando ‘aparecer’, ‘chamar atenção’, ser notado, percebido, pra reafirmar pra nós mesmo que ainda existimos.

É o mundo onde se ressalta o que Bauman chamou de ‘fragilidade dos laços humanos’. Onde as pessoas são extremamente superficiais; vivem relações superficiais, rasas, rápidas, sem laços.
É o admirável mundo ‘novo ‘ onde milhões de livros estão disponíveis virtualmente, mas as pessoas não os leem. A recente ‘Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil’, realizada pelo IBOPE, revelou que 44% da população brasileira não lê e pelo menos 30% nunca compraram um livro. É o mundo (estranho) das falas e teorias sempre na superfície; das bobagens legitimadas; do blá, blá, blá academicista que não leva a lugar nenhum; do encurtamento das memórias (histórica, temporal e política); das paixões voláteis; do adoecimento da alma.
O mundo do rivotril; da depressão; da dificuldade de olhar nos olhos; da palavra que nada vale; da cara de pau estarrecedora de pessoas públicas que descaradamente mentem em rede nacional.

É o admirável mundo onde temos todos os instrumentos nas mãos para comprar, analisar, tomar decisões mais acertadas, mas que, loucamente, não conseguimos enxergá-los ou usá-los adequadamente.
É o mundo onde se manda flores virtuais, abraços virtuais, faz-se sexo virtual e se ama (?) também de forma virtual.

É o mundo onde o virtual é o real e às vezes o único real de milhares de pessoas.
É o estranho tempo onde crianças, adolescentes, jovens e adultos se isolam em seus quartos com cabeças, dedos e almas a serviço das telas (grandes e pequenas) das suas máquinas tecnológicas.
Onde o pensamento acelerado não nos deixa dormir. Onde tudo é muito mais ‘rápido e prático’ mas, que não se reverte em mais tempo. Aliás, é o tempo do não tempo. O tempo do corre-corre; da incapacidade de visitar um amigo pelo simples prazer de ter e dar o prazer de sua companhia ou mesmo para se despedir quando eles partem para nunca mais voltar.

É o tempo no qual as pessoas vão ao um velório e, incapazes de se solidarizar com a dor do outro, nos constrangem contando piadas.
Tempo do faz de conta (sem faz de conta); Tempo de crianças adultas muito cedo e de adultos infantilizados e abobalhados irremediavelmente aos 40.

Tempo de lutas intensas travadas por coletivos cada dia, menores e de uma inércia social diante do caos, para a qual não achamos sentido ou respostas claras.
Tempo onde as pessoas têm medo de amar, de envolverem-se, mas não têm medo de abandonar, ferir, machucar.
Tempo, em que,o dia termina sem que a gente tenha se dado conta. Tempo no qual o natal chega antes de terminarmos de descansar das festas juninas. Tempo que passa e tudo leva sem a gente perceber.

Um dia desses, fiquei feliz por rever uma amiga de infância. Como o “tempo” era curto (de apenas uma noite), sentei-me para conversar com ela, com a esperança de ficarmos horas e horas jogando conversa fora, como fizemos tantas vezes. Para minha surpresa, ela dedicou não mais do que cinco minutos pra falar comigo. Depois se voltou pra seu celular e sequer se deu conta que saí do quarto e fui dormir. Ela nem percebeu a porta que se fechou à sua frente… Estava ocupada demais para dar-se conta.

Fui dormir, e, antes de pegar no sono, entrei na página do ‘face’ e postei lá o pedacinho de uma canção que ouvia ainda criança e que coube bem:
“Essa tristeza toda/Dentro do coração/Parece que não muda/Até que passe a solidão. As pessoas não se falam mais/Por isso eu preciso de você demais/Eu preciso de você./Fique então comigo/Preciso conversar/Eu busco um amigo/Coisa difícil de encontrar” (Paulo Maia).

Professora Ivânia Freitas – UNEB- Campus VII – Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia.

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