Ofício de Fateira por Álamo Pimentel

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alamo pimentel

O trabalho humano transforma a natureza ao mesmo tempo em que transforma, produz e expande diferentes expressões da nossa humanidade. Na semana em que Juazeiro comemora os seus 138 anos de emancipação política, elegi o ofício das fateiras como símbolo da cidade que me ensinou a ver o mundo com um pé no Rio São Francisco e o outro na Caatinga.

As fateiras constituem um grupo social cada vez mais invisível na Juazeiro urbana de hoje. Na minha infância elas se reuniam no bairro Angari, às margens do Velho Chico, para limpar as vísceras de caprinos, bovinos e suínos abatidos nos quintais das casas próximas, ou no velho matadouro da cidade, localizado ali mesmo, um pouco mais acima da beira do rio.

As vísceras eram carregadas em grandes bacias de zinco ou de reaproveitamento de latas de óleos e querosenes. As mulheres conduziam com extrema elegância o fardo de seus ofícios. Arreavam as bacias ao lado de uma pedra que seria utilizada para afiar suas facas. Acocoravam-se umas ao lado das outras com as saias enfiadas entre as pernas e ali, sob o testemundo do sol escaldante, limpavam tripas e buchos que seriam incoporados ao sangue coalhado e a outras pequenas miudezas dos ventres dos animais. Tudo se transformaria na buchada de bode ou no sarapatel, duas iguarias apreciadas por famílias de todas as classes sociais da minha querida terra natal.

Além da faca, varinhas muito finas, obtidas das nervuras das folhas dos coqueiros ou mesmo lapidadas à mão, a partir de delicados pedaços de madeira, complemetavam a técnica da limpeza das tripas. Estes frágeis artefatos eram utilizados para virar tripas pelo avesso, a fim de eliminar a matéria digerida que os bichos ainda carregavam depois de abatidos.

O ritual do trabalho era acompanhado por rodas de conversas, sobre os mais diferentes assuntos. Às vezes ocorriam desentendimentos terríveis entre as mulheres. O palco da labuta transformava-se em arenade enfrentamentos, daí surgiu a expressão local “briga de fateira”. É que estas brigas não dispensavam facas e línguas afiadas em que a elegância das fateiras transfigurava-se em gestos e verbos como temíveis armas de guerra.

No exercício do seu trabalho as fateiras produzem fortes vínculos entre si. Geram sociabilidades femininas nas quais compartilham formas próprias de identificação como grupo social. Por outro lado, o trato com os intestinos dos animais gera técnicas do corpo e técnicas de manejo das vísceras que instituíram feitos, gestos e linguajares próprios deste ofício.

Corpo, alma e vida social das fateiras produzem uma estética própria que combina a força e a delicadeza, a elegância, a coragem e a fúria no desenrolar de suas experiências. A solidariedade feminina que as reúne em grupo expressa uma ética da vida entre o sertão e o rio. O fruto de seu trabalho expressa o poder de alcançar as mesas dos pobres e ricos, negros e brancos, moradores do centro e da periferia urbana de Juazeiro, com o aproveitamento quase que total dos intestinos dos animais. O ofício de fateira é também um ato politico através do qual a natureza e a sociedade juzeirense se transformam nas mãos destas mulheres e participam de um dos mais belos biomas do nosso planeta: a caatinga.

O humano se faz Humano na sua capacidade de produzir símbolos que agregam e multiplicam sentidos para a sua existência. O ofício de fateira é um dos símbolos que persiste em minha memória como juazeirense. Trata-se de um ofício que extrapola os limites da técnica porque alça o estatuto de uma arte de viver, praticada hoje longe dos olhos de toda a sociedade juazeirense mas que, em algum quintal do centro, da periferia urbana, ou dos distritos do município ainda faz chegar aos nossos pratos, as delícias recolhidas dos ventres dos animais.

À distância da minha terra, do meu povo, do meu rio, eu sempre me vejo melhor através das memórias que alimentam minhas marcas de pertencimento a este mundo. As memórias da nossa vida social oferecem o melhor provimento para a expansão da nossa existência. Juazeiro sempre renasce através da capacidade incrível que o nosso povo possui de se inventar. Tenho para mim que Juazeiro é fêmea. Fateira ancestral de de todo o povo que entre o rio e o sertão não cansa de criar civilizações locais.

Álamo Pimentel, juzeirense, poeta, ensaísta, especialista em Antropologia, doutor em Educação, pós doutor em Sociologia do Conhecimento, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

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