O fermento da maldade – Por Álamo Pimentel

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” A intolerância expressa um sentimento coletivo produzido lenta e silenciosamente no cotidiano de grupos sociais que cultivam (e cultuam) diferentes formas de totalitarismo.  Age como dispositivo de subjetivação que fermenta a maldade contra as diferenças sociais para o prevalecimento de suas verdades únicas. O ódio e a estreiteza de visão constituem dois dos principais elementos expressivos das diferentes formas de intolerância.

A ruptura da democracia no contexto brasileiro atual favorece a irrupção de diferentes acontecimentos marcados por discursos particulares com pretensões totalitárias. O ódio à convivência multicultural e a afirmação de valores e práticas autocráticos conferem condições de expansão da maldade. Parto do pressuposto que a maldade não está na essência das pessoas, mas resulta da produção histórica de expressão das emoções compartilhadas social e culturalmente. Acontece pela obsessão e imposição dos atributos de uma visão particular da bondade associada a uma defesa de verdades universais.

No último dia 04 de outubro deste ano, o Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) foi invadido por dois homens que, em nome de um suposto movimento nacionalista, agrediram e ameaçaram a comunidade acadêmica. Após rasgarem cartazes expostos no mural do Instituto, eles lançaram ameaças contra estudantes e professores e publicaram nas redes sociais a defesa da “repressão constante e massiva de estudantes que defendem o socialismo”. Um dos invasores utilizava farda do exército e deixou-se fotografar ao lado do seu acompanhante em atitude de continência. Fez do seu corpo símbolo do culto à sua visão de mundo. A farda tornara visível a sua identidade totalitária.

Identidades totalitárias não se produzem em vazios sociais, por espontaneidade pessoal. Elas resultam de arranjos complexos de símbolos que circulam historicamente por meio de uma difusão silenciosa e, por vezes aleatória. Fardas, togas, bíblias, armas, dispositivos oculares, e uma série infindável de instrumentos de coerção e silenciamento das diferenças ajustam-se aos corpos autoritários, para delinear de forma mais incisiva suas feições totalitárias. Os invasores nacionalistas da UFAL falavam para suas comunidades de iguais ao tempo em que lançavam suas intolerâncias aos “diferentes”.

O assustador episódio não pode ser visto como um acontecimento isolado. No dia 15 de março do ano de 2015, manifestantes favoráveis ao impeachment da presidenta da República foram às ruas. Conduziam uma faixa com a seguinte frase: “Reforma política só os militares podem fazer”. No dia 31 de maio de 2015, na orla de Maceió, um professor da UFAL, um advogado e um estudante foram presos na concentração da Marcha da Maconha. Questionavam a interdição militar da marcha e foram detidos.  O abuso da autoridade fardada reprimiu violentamente os manifestantes, ao mesmo tempo em que exerceu o magistério do autoritarismo na capital alagoana. A farda que impõe autoridade disfarça o ódio ao tempo em que inscreve o medo nos corpos rebeldes. Símbolo por excelência da repressão, a farda reapareceu na invasão dos territórios da vida acadêmica. A intolerância percorre os cursos da história pelas tramas das subjetividades. Transforma sentimentos em distorções cognitivas e, estas últimas, em atos de interdição opressiva daqueles e daquelas que não se submetem aos controles dos seus moldes de visão. Para grande parte da população local o estado de Alagoas ainda é denominado: “Terra dos Marechais”.

A intolerância ideológica que contagia uma parcela insondável da população brasileira tem gerado performances terríveis das maldades que naturalizam as incivilidades do nosso tempo. As universidades existem para que a diversidade do pensamento cresça e amplie as riquezas dos processos civilizadores de um povo. Quando o sentimento contrário às diferenças de pensamento invade, grita, rasga e publiciza o ódio contra a liberdade de expressão no solo da vida acadêmica, não são apenas as universidades que correm riscos, mas toda uma sociedade, todo um povo, toda uma civilização.

Racismo, machismo, homofobias, lesbofobias, transfobias, classismos, xenofobias, ideologismos, regionalismos designam as intolerâncias presentes na nossa vida social. Nomeiam as performances que expandem as maldades cotidianas disseminadoras do ódio e da estupidez humana dos nossos dias. A atriz global Suzana Vieira usou da sua fama para apontar a ‘ignorância histórica’ de nortistas e nordestinos quanto aos acontecimentos do momento recente da vida brasileira. Ela estava em Curitiba no dia 09 de junho deste ano, participava de um ato de apoio ao Juiz Sérgio Moro, ao lado de outros artistas globais. O ativista negro paulista Douglas Belchior denunciou em artigo, um internauta que o atacou com a seguinte afirmação: “a política não é lugar para preto vagabundo feito você”. A transexual Laura Vermont morreu de traumatismo craniano no dia 21 de novembro de 2015. Fora barbaramente espancada e ignorada em seu suplício no mês de junho do mesmo ano, na Vila Curuçá, zona leste de São Paulo. As performances da intolerância variam conforme sutileza ou intensidade da maldade no ato de interdição do outro.

Da serenidade teatral (e preconceituosa) da atriz Suzana Vieira à brutalidade dos algozes de Laura Vermont, a maldade fermenta e varia de intensidades para a produção das intolerâncias presentes no corpo e alma sociais dos brasileiros e das brasileiras. Os protagonistas da invasão da UFAL deixaram-nos mais uma lição: quanto se trata da defesa de convicções não somos pacíficos.

Nunca fomos pacíficos. No trato com a maldade e a estupidez que forjam nossas intolerâncias cotidianas, somos omissos. Está nas raízes da nossa formação cultural: indígenas foram dizimados no ofício da catequização, negros e negras foram supliciados pela escravização, a ganância dos ricos inventou a pobreza à brasileira, o patriarcado inferiorizou a mulher, as heteronormatividades produziram os extermínios de outras sexualidades, os monoteísmos religiosos calam e maltratam práticas religiosas não ocidentalizadas, a arrogância do pensamento único extermina a diversidade do pensamento. As maldades que vicejam das nossas intolerâncias históricas, atuam como fermento, enquanto fazem crescer práticas do ódio e da estupidez, impedem o crescimento de outras formas de convívio multicultural “.

 

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