A servidão cognitiva – Por Álamo Pimentel  

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A imposição da Reforma do Ensino Médio articulada à adoção de medidas restritivas de financiamento público da educação conduz o Brasil, neste momento, à radicalização do jugo do Estado aos interesses do mercado. Há intersecções perversas entre a MP 746/2016 (que institui a reforma do EM) e a PEC 241/2016 (que a caminho do Senado Federal passa a ser denominada PEC 55), sobretudo no que diz respeito ao financiamento das mudanças propostas e os efeitos sociais e pedagógicos de tais proposições. Ensinar a servir parece ser o anúncio central de tal Reforma.

Há quatro aspectos explicitados pela Reforma do Ensino Médio associados à redefinição do regime fiscal imposto pela PEC 55 que exigem muito debate e muita reflexão. O primeiro deles diz respeito à mudança de carga horária das escolas que passarão a atuar em regime de tempo integral. O efeito desta mudança implica a restrição da oferta de vagas em, pelo menos, cinqüenta por cento das escolas já no ano de 2017. Isto porque a capacidade estrutural das escolas em regime de 800 horas será duramente afetada pelo regime de 1400 horas.

As escolas exigirão investimentos na melhoria de suas condições materiais de atendimento. Refeitórios, instalações sanitárias, bibliotecas e espaços de convivência inadequados dificultarão a permanência digna de estudantes e professores em tempo integral. Além disso, os estudantes que não conseguirem acesso a escolas localizadas nas proximidades de suas residências e dos seus locais de trabalho terão mais despesas, e ficarão mais expostos a inúmeras vulnerabilidades no seu deslocamento para os estudos. Escolas de Tempo Integral exigem professores com dedicação exclusiva de 40 horas. Caso não haja investimento na melhoria salarial e nas condições de trabalho, muitos seguirão com cargas horárias fracionadas entre instituições públicas e privadas, com as mesmas dificuldades de atuação e acompanhamento pedagógico vigentes até o presente momento. A reestruturação exige, ainda, investimento em formação de professores, para que compreendam os novos conceitos e modelos institucionais com que terão que lidar. Muitos estudantes do Ensino Médio precisam trabalhar para ajudar suas famílias, a obrigatoriedade da presença em tempo integral forçosamente os obrigará à escolha forçada (e perversa) ao abandono da escola, ou do trabalho.

O segundo aspecto a ser destacado recai sobre a nova configuração curricular. Com a implantação do novo modelo de Ensino Médio, as estudantes e os estudantes passarão a ter formação geral no primeiro ano e, a partir do segundo ano poderão compor seus itinerários formativos a partir da dedicação a uma área especializada do currículo (linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica profissional). O que se apresenta como um benefício na escolha da carreira também se coloca como alienação do direito à formação geral ao longo do transcurso nos três anos de Ensino Médio. Ao escolher o caminho a ser feito cada estudante passa a ser responsabilizado pelo direcionamento do seu “projeto de vida” (termo utilizado pela defesa da Reforma). O Estado transfere para os indivíduos a responsabilidade com a sua formação e, ao mesmo tempo, impõe a precocidade de escolha entre uma formação mais humanística e uma formação técnica. A flexibilização curricular proposta muda as posições das fronteiras curriculares entre disciplinas, presentes no ensino regular, para as fronteiras entre áreas de conhecimento. A promessa da liberdade de escolha está pautada pela interdição à dúvida quanto à escolha a ser feita já no ato da matrícula do segundo ano de formação no Ensino Médio.

O terceiro aspecto incide sobre a não obrigatoriedade do ensino de componentes curriculares tais como Educação Física, Artes, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio. Isto revela uma visão parcial dos processos formativos naquilo que a atual Reforma define como Educação em Tempo Integral. Reforça a fórmula do ‘mais do mesmo’ na permanência em sala de aula. Obstrui projetos de formação que incluam reflexões sobre o corpo, a criatividade, o pensamento questionador e a ampliação de saberes sociais necessários à vida dentro e fora da escola. Além disto, subalterniza áreas do conhecimento dentro do currículo proposto, uma vez que a não obrigatoriedade do ensino de determinados componentes curriculares, historicamente produz a desobrigação individual, social e pública para com uma formação mais ampla, que considere as pessoas para além das suas competências exclusivamente cognitivas e, diga-se de passagem, conteudistas.

Por fim, o quarto aspecto, mas não menos relevante, remete à forma autoritária como a Reforma do Ensino Médio foi colocada. A publicação da Medida Provisória interditou o debate sobre o tema. Desprezou a produção de conhecimento em curso no Brasil sobre as diferenças entre Educação Integral em Tempo Integral (que propõe a formação humana em suas mais diferentes dimensões) e a Educação em Tempo Integral (que amplia a duração da formação especializada e condicionante do pensamento já no Ensino Médio). Reforça as mentalidades autoritárias presentes nos formuladores de leis e projetos governamentais, bem como entre gestores e educadores, sempre dispostos a encontrar soluções para a escola e não com a escola. Considerando que esta Medida Provisória foi formulada sem uma reflexão profunda sobre os efeitos da PEC 55, o que se pode concluir, provisoriamente, é que o atual governo normatiza transferências de responsabilidades públicas para a sociedade.

Não é difícil prever que a partir do ano de 2017 o agravamento das contradições históricas na educação brasileira aprofundará conflitos entre classe, raça, gênero e pessoas com deficiência nas lutas por melhores condições de acesso e permanência nas escolas. A natureza coercitiva da MP 746/2016 e da PEC 55, produzirá mais exclusão e forçará uma inclusão condicionante a escolhas entre formação humana e formação técnica, obstruções do avanço na formação entre o Ensino Médio e o Ensino Superior e, por fim o abandono da escola para garantia do ingresso precoce no Mercado de Trabalho. Talvez estejamos assistindo à ascendência da restrição do financiamento público da educação combinada com a imposição de leis de servidão aos interesses do Mercado. Uma repetição de dilemas presentes na História da Educação Brasileira desde os tempos da colônia.

A urgência (imposta) nos debates e protestos contra a PEC 55 obscureceu o debate sobre a já publicada MP 746/2016. A relação entre as duas peças com força de lei não pode ser descuidada. O atual momento político brasileiro coloca-nos diante de um Estado tirano (conduzido pelo parlamento, pela mídia hegemônica, pelo judiciário e; por um poder executivo comprometido com os interesses do mercado). Questionar a forma como esta tirania se constitui socialmente exige trabalho do pensamento na transformação de mentalidades, missão educacional incontornável para todos e todas que não descuidam da história como um fenômeno sociocultural capaz de elevar nossas condições civilizatórias. Duas lições, uma do século XVI e uma do momento mais recente das ocupações das escolas públicas no Brasil talvez sejam relevantes para este trabalho do pensamento.

O jovem Etienne de La Boétie, em meados do século XVI, nos ensinou que a servidão voluntária resulta da combinação entre o hábito de obedecer cegamente, a ausência de coragem para o combate contra as tiranias e os conluios políticos que sustentam os tiranos (era apenas um adolescente quando escreveu o seu discurso, como nos lembra Montaigne em seu belo ensaio Sobre A Amizade). A jovem Ana Júlia Ribeiro, estudante secundarista que participa das ocupações nas escolas no Paraná, diz-nos que “o movimento estudantil nos trouxe mais conhecimento de política e cidadania do que todo o tempo que estivemos sentados e enfileirados em aulas-padrão”. A distância histórica entre os dois jovens nos revela que a luta contra toda forma de servidão passa pela educação e requer o exercício da liberdade sem adjetivações.

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