Medicalização da vida: No Caminho da normalidade? – Por Luciandra Pinheiro

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O ser humano está doente. Esta é uma afirmação que muitos de nós já ouvimos ou reproduzimos em algum momento. Mas será que temos de fato a noção do que isso significa? Imersos numa busca incessante por um padrão de “normalidade”, caminhamos atentos a tudo que demanda tal conceito. Ser normal só pode ser definido junto com o seu contrário, o anormal ou patológico, um não pode ser apreendido sem o outro e esses adjetivos só se aplicam aos fenômenos da vida, àquilo que qualifica eventos e estados em positivos ou negativos.

Quando crianças, aprendemos nas aulas de ciências que o ser humano nasce, cresce, se reproduz, envelhece e morre. Talvez uma explicação resumida e simplista para não nos confrontarmos com algo bem mais complexo. Seria fácil entender se não tivéssemos que interpretar. Entre o nascer e o morrer percorremos caminhos difíceis e conflituosos, somos colocados à prova de resistências diariamente e com isso surgem as mais variadas demandas psíquicas e os nossos adoecimentos. Será que estamos mesmo doentes ou estão nos adoecendo?

Vivenciamos um fenômeno chamado de “medicalização da vida”; em geral diz respeito a um processo no qual uma série de comportamentos individuais, coletivos e sociais, antes considerados comuns e fazendo parte do nosso cotidiano, se tornaram patologias, ou seja, doenças (patologizar é o verbo a ser conjugado). Se elas surgem, logo chegam os medicamentos que irão combatê-las. O uso em demasia de remédios tem provocado críticas entre pesquisadores e psiquiatras de várias partes do mundo, inclusive através de campanhas contra a comercialização de alguns.

O psiquiatra americano Allen Frances é um exemplo dos que levantam essa bandeira. Responsável por chefiar grupos de pesquisas na área, lançou um livro intitulado “Voltando ao Normal”, uma obra repleta de críticas severas à principal referência acadêmica da psiquiatria, cuja elaboração, ele próprio ajudou na sua 4ª edição. Desde 1952, o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) se tornou a “bíblia” dos psiquiatras, onde norteia e revisa periodicamente os avanços do conhecimento científico. Frances afirma que houve certo exagero e um aumento significativo de diagnósticos precoces que contribuíram e muito para a crescente medicalização da vida: “Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazerem médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muitos danos, especialmente na psiquiatria infantil.” Diz o especialista.

Por outro lado, observamos que não existe apenas uma vontade interna do campo científico para que haja diagnósticos e intervenções medicamentosas, há também uma exigência social. Temos a impressão que a nossa geração foi responsável por descobrir os grandes problemas atuais, o que não coube às anteriores. Será que descobrimos mesmo? Isso não estaria atrelado às mudanças que sofremos cotidianamente? Estará a ciência modificando tudo com o nosso consentimento? Não podemos desconsiderar as novas questões nas relações interpessoais. Não nos esqueçamos das normas atuais aplicadas às famílias e à sociedade como um todo. Diante de tantos questionamentos, uma coisa é certa: assim como aprendemos que a espécie humana nasce, cresce, se reproduz, envelhece e morre, aprendemos também que ela sobrevive há milhões de anos graças à capacidade de confrontar a adversidade e quem sabe um dia a ciência possa responder quando a perdemos.

Por Luciandra Pinheiro Cabral

Psicanalista com especialização em psicoterapia infantil pelo Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL) em Recife.

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