“Sempre Aos Domingos”, por Sibelle Fonseca: Uma Páscoa bem no Dia da Mentira: o que isso te sugere?

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Domingo de Páscoa remete à família. Eu, oriunda de uma família tradicional da classe média brasileira e cheia de privilégios e rituais, passei para os meus filhos tudo o que mandava o figurino da festa mais comercial que religiosa. Eu, mulher separada e com crianças pequenas para formar, também não deixei de passar valores nobres, que os transformaram em seres muito dignos e especiais, dos quais me orgulho muito.

A manhã de Páscoa era uma manhã diferente e ansiosa para eles que, não viam a hora de chegar depois do almoço, para contar quantos ovos de chocolate ganharia cada um.

O almoço em família era na casa dos avós, um encontro que tinha de tudo, só não hipocrisia. Tinha alegria, algazarra, falas altas, copos cheios, mesa farta, muita música, pouca reza, choros e gargalhadas, união, cumplicidade, discussões, diferenças e indiferenças e muita, muita verdade. Talvez nem percebêssemos que também fazíamos amor ali. E nem imaginávamos que aquilo tudo logo viraria apenas lembranças. Foram marcantes aqueles momentos, mas acabamos negligenciando um pouco, iludidos com o que achamos que seria eterno.

Reclamamos do custo da festa, da obrigação de comparecer, da mesmice de todos os anos, da conversa repetida do avô, de quem bebia mais, falava mais, comia mais, do barulho das crianças e da correria pela casa, da bagunça que ficava, da pia cheia de pratos pra lavar, do mais gulosinho que devorava todo chocolate num dia só.

Desatentos à efemeridade das coisas, deixamos de nos lambuzar mais destes momentos. E eles passaram. E eles passam, como tudo passa.

Hoje, sinto uma saudade imensa daquelas manhãs. Das crianças pequenas e da família grande que se encolheu. Dos que já se foram. Sinto saudade de tê-los todos ao alcance de um abraço. Sinto uma saudade da boa.

Na minha família, como todas, com exceção daquelas que se sustentam na hipocrisia, tinham algumas desavenças, intrigas, intolerâncias, mas o mais importante não faltava: verdade em tudo que se sentia e dizia. As regras eram rígidas ao ponto de ter o lugar do pai marcado na mesa e o obrigatório “senhor, meu pai”, para atender ao seu chamado.

Meu pai nos ensinou, com seu jeito, a termos intensidade em tudo, a primarmos pela franqueza nas relações. Dizia meu velho: “Desagrade com a verdade e jamais agrade com a mentira”. E assim nos ensinou que a hipocrisia não compensa.

Domingo de Páscoa remete à família. E esta Páscoa de hoje, que cai bem no “Dia da Mentira”, pensei em quantas famílias contaminam a sociedade com suas hipocrisias. Quantas famílias estragam os seus entes com preconceitos, convenções mentirosas e regras obtusas, que acabam formando adultos doentes e perversos consigo e com os outros. Quantas são aquelas que se utilizam das religiões para, em nome de Deus, propagar tanto desamor e desrespeito ao próximo.

Pensei na tradicional família brasileira, que não se assunta e quer pertencer a uma classe que jamais será a sua. Este tipo de família é responsável por adultos adoecidos por crenças limitantes e tão cruéis. Que forma os desumanos e avessos aos direitos de todas as pessoas de ser e fazer o que desejam. Do tipo que cria pessoas frustradas e de auto-estima nos pés. Que educa os racistas, machistas, homofóbicos, egoístas, convenientes e os covardes, também.

Aquele tipo de família que não aceita o filho gay e que limita a cozinha como espaço da mulher; Aquela que não aceita o namorado preto da filha branca (ou que parece branca); Que impõe ser o casamento indissolúvel, mesmo que seja uma relação abusiva e de traições; Aquela família que ensina os filhos a mentirem, a serem desonestos, viverem de futilidades e aparências; Levarem vantagem em tudo e serem os mais espertos; Aquela que inspira discursos carregados no ódio e desrespeito ao humano; Aquela família que julga, julga, condena, condena e diz que o bandido deve ser morto, desde que ele não seja o seu. E sendo contra o aborto, paga o da irmã numa clinica de luxo.

Antes do almoço da Páscoa de hoje, dá tempo pensar a qual família você pertence e quais as suas mentiras. Ainda dá tempo, aproveitar o sentido da Páscoa, que sugere renovação, e renovar seus conceitos e crenças. Que tal deixar morrer o que não presta dentro de você e ressuscitar os bons sentimentos e valores, aqueles fincados na verdade, na empatia, na generosidade? Largue isso de viver de aparências, priorize a essência.

Vai mais um outro conselho, então: Aproveite cada instante do seu domingo de Páscoa, como se fosse a última. Não reprima gestos de amor, não reclame das crianças e nem da comida, aceite as diferenças, jejue de preconceitos, abrace aquele irmão que é tido como o “mais difícil”, perdoe qualquer  rixa, supere animosidades, desapegue-se do chocolate, tome a benção aos pais, ore em agradecimento pelos que já partiram e seja verdadeiro, por favor. Aproveite esta Páscoa – “a passagem”, para ser muito melhor na Páscoa seguinte.

E mais: Produza hoje as melhores lembranças para as Páscoas vindouras, porque viver é colecionar lembranças para o porvir. Você vai precisar delas, mais tarde, para não ser um chocolate amargo!

Juro que eu tenho feito isso. Tenho tentado transformar cada dia meu, em um dia de Páscoa. Tenho buscado ser melhor a cada manhã. Me livrado de mentiras e sendo ainda mais verdadeira com o outro. Não tem sido fácil. Tem muita coisa feia no mundo, que acaba nos desencantando. Mas mesmo vivendo decepções, insisto em acreditar em gente. E com erros e acertos, tenho re-significado os meus dias. Re-decorado meu ninho. Vivido novas lembranças. Seguindo em frente, porque vida é páscoa… e ai de quem não compreenda isso!

Feliz Páscoa pra você!

Sibelle Fonseca é radialista, militante do jornalismo, pedagoga, feminista, conselheira da mulher, mãe de quatro filhos, cantora nas horas mais prazerosas, defensora dos direitos humanos e uma amante da vida e de gente.

1 COMENTÁRIO

  1. Sibele boa noite….agradecida por suas memórias que tanto remeteram as minhas, dadas as devidas diferenças….muito bom texto que nos traz a tradição e também as reflexões indispensáveis para uma mudança de paradigmas da instituição família. Mudanças necessárias para minimizar os imapactos sociais causados pelo preconceito e a discriminação.

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