Sob comoção, multidão acompanha chegada de Mãe Stella de Oxóssi ao Orum

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Mãe Stella de Oxóssi chegou ao Orum por volta das 11h30 deste sábado (29). Foi a hora em que seu corpo foi sepultado, no lote 2382 do cemitério Parque Jardim da Saudade, em Campinas de Pirajá, em Salvador. O número da sepultura é mais uma referência aos orixás. É Xangô, o patrono do Ilê Axé Opô Afonjá, onde a mãe de santo deu o passo inicial até se tornar a candomblecista mais importante do país.

A despedida da ialorixá do Aiyê ocorreu sob muita comoção. Algo esperado para alguém que se tornou uma das maiores sacerdotisas do candomblé no país, com legado que se estendeu também para a luta contra a intolerância religiosa e para os campos da cultura e literatura, com autoria de várias obras.

Durante o momento em que o caixão era colocado na cova, ocorreu uma espécie de transe coletivo. Vestidos de branco, como rege a tradição do candomblé, filhas e filhos de santo gemiam, davam gritos e falavam diferentes línguas de matriz africana.

Eram os santos chegando para receber no Orum o espírito de Odé Kayodê, nome sagrado de Mãe Stella. Algo que faz parte dos rituais de sepultamento do candomblé, mas que, no enterro de Mãe Stella, foi potencializado. Pois estava sendo enterrada ali a sacerdotisa com maior grau de liderança dentro do terreiro e da liturgia.

Além do transe, vários cânticos foram ouvidos durante o sepultamento, como forma de “conceber a espiritualidade”, segundo um filho de santo ouvido pela reportagem.

O enterro aconteceu em tom de tristeza, mas de uma tristeza comedida. O comportamento de grande parte dos presentes ostentava deferência à figura de liderança, sabedoria e ao legado deixado pela mãe de santo, que estava ali se reunindo à sua ancestralidade.

A cerimônia teve também a presença de autoridades como o vice-prefeito de Salvador, Bruno Reis, a senadora Lídice da Mata, o reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), João Carlos Salles, e as secretárias estaduais de Proteção às Mulheres, Julieta Palmeira, e de Promoção Social, Fabya Reis.

Também presente, a secretária de Cultura da Bahia, Arany Santana, estava muito emocionada. Amiga de Mãe Stella desde 1986, quando se conheceram em uma viagem ao Benin, país da África Ocidental, ela não segurava o choro. Outros grandes nomes da cultura baiana, como Vovô do Ilê e o poeta e músico José Carlos Capinam, também foram ao enterro.

Quem não compareceu foi a mulher de Mãe Stella, Graziela Dhomini, que esteve no centro de uma disputa judicial sobre o destino do corpo da ialorixá. Ela seria sepultada na cidade de Nazaré, no recôncavo baiano, mas o enterro foi transferido para a capital baiana após decisão da Justiça.

A juíza Caroline Rosa de Almeida Velame Vieira aceitou um pedido feito pela Sociedade Cruz Santa, entidade civil que mantém e administra o Ilê Axé Opô Afonjá. Em sua decisão, a magistrada entendeu que “se deve conceder à comunidade o exercício do culto religioso, ante a supremacia do princípio que aqui seria violado, de forma irreversível, do exercício livre da religião da qual a Iya Stella de Oxóssi era líder, bem como a proteção do patrimônio histórico e cultural do exercício da religião de matriz africana”.

Esta não foi a primeira vez que Graziela entrou em confronto com os filhos e filhas de santo do terreiro. Desde 2017, Mãe Stella morava em Nazaré, levada por Graziela, por causa de um desentendimento entre a companheira e integrantes do Afonjá. Ela chegou a ser acusada de tentar dilapidar o patrimônio da ialorixá e ingressou com queixa-crime por calúnia e difamação contra o presidente da Sociedade Cruz Santa do Afonjá, Ribamar Daniel.

Ao chegar a Salvador, o corpo da ialorixá foi levado para uma funerária e, em seguida, transferido para o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, no bairro de São Gonçalo do Retiro. No local, filhos de santo deram início aos rituais para o enterro da sacerdotisa. Neste sábado, o corpo foi levado do terreiro para o cemitério, em cortejo.

Logo depois do sepultamento, pessoas presentes na cerimônia acenderam velas próximo ao caixão da mãe de santo. Segundo explicou um filho de santo ao BNews, as velas significam luz para o espírito que está sendo recebido no Orum. É uma forma de iluminar os caminhos para o céu.

Ainda neste sábado, começa o axexê, um ritual de sete dias, que é uma espécie de conclusão das obrigações de uma pessoa iniciada no candomblé. Com isso, o espírito pode cortar totalmente seus laços com a vida terrena.

Em seguida, o terreiro será fechado pelo período de um ano. É o processo de luto das filhas e filhos de santo pela morte de sua ialorixá. Passados os 365 dias, como prega a tradição, um novo ritual escolherá quem será a substituta de Mãe Stella – o Afonjá é uma casa de tradição feminina e, por isso, só mulheres podem assumir sua liderança.“Xangô vai determinar quem ocupa o lugar dela”, explicou Adriano Azevedo, que é ogã (sacerdote) do terreiro e sobrinho da sacerdotisa.

 


Foto: Divulgação

Filhos de santo destacam legado de Mãe Stella
Em 28 de dezembro de 2016, Adriano estava enterrando o pai. Exatamente dois anos depois, estava recebendo o corpo da tia em Salvador. Sobrinho de Mãe Stella, o ogã passou a cerimônia de sepultamento com semblante contido, apesar de visivelmente abatido. Ficou próximo do caixão e, após o enterro, recebeu os abraços, palavras de conforto e condolências de quem foi se despedir da ialorixá.

Em entrevista ao BNews, ele disse ter vivido dias intensos após a morte da tia. “Meu pai fez dois anos de falecido ontem. Ontem foi um dia muito intenso para mim. A família é do candomblé, mas teve uma criação católica. Ontem, na missa para meu pai, foram estendidas homenagens para Mãe Stella. Minha mãe me disse que foi uma grande emoção”, contou.

Ele definiu a convivência com Mãe Stella como “intensa de ensinamentos”. Afirmou que a tia preparou os filhos para conduzir os trabalhos no terreiro em sua ausência. “Mãe Stella sempre foi muito ativa dentro dos rituais, tanto que hoje o Opô Afonjá tem uma equipe formada por ela, que faz todo o procedimento. Ela soube ensinar todos e, a partir disso, tudo que era feito passava pelo aval dela E algumas coisas aconteciam sem ela porque ela já tinha ensinado”, relatou.

O ogã também revelou como foram os momentos após a morte de Mãe Stella até a decisão da Justiça que ordenou que o enterro dela fosse feito em Salvador, com todo o ritual pregado dentro do candomblé. De acordo com ele, a morte da ialorixá era considerada iminente por conta da idade dela – a mãe de santo faleceu aos 93 anos -, mas as circunstâncias da disputa judicial fizeram com que a “tristeza triplicasse”.

“O sentimento era de perda total por não ter contato com o corpo, com os rituais que foram feitos desde o momento que tivemos posse novamente do corpo de Mãe Stella. Mas, depois da liminar, se tornou um misto de felicidade e missão cumprida. Era um momento que foi nos retirado de forma muito grotesca, perversa. Não tem outra palavra. Foi perversidade”, lamentou.

Ele ainda definiu a mudança de Mãe Stella para Nazaré como um momento em que os filhos de santo ficaram com “pés e mãos atados”. “Mesmo sem a presença dela nos rituais, ela participava, porque a casa dela é dentro do Opô Afonjá. A gente não ter essa orientação próxima era complicado. Ela fez muita falta, mas estavam todos cientes sobre os que caminhos que precisavam ser tomados na ausência dela”, ponderou.

O cantor Tonho Matéria comemorou o fato de sacerdotisa ter sido enterrada em Salvador. “Se ela fosse enterrada em Nazaré, seria enterrada sob o jugo do racismo”, disse, ao classificar a atitude de Graziela como intolerância religiosa. O artista afirmou também que Mãe Stella era uma mulher “muito acolhedora e que transportava para a gente o lado do equilíbrio”.

Professor de antropologia da Ufba, membro da Academia de Letras da Bahia (ALB) e filho de santo, Ordep Serra destacou o legado que a ialorixá deixa para a cultura do país.

“Uma grande sacerdotisa, ajudou muita gente, acolheu muita gente, fez uma obra intelectual muito importante. Ela defendeu os direitos da comunidade negra, das mulheres. Deixa um legado imenso”, exaltou. Mãe Stella foi a primeira negra e ialorixá na ALB e ocupa a cadeira 33, que tem como patrono Castro Alves.

E foi justamente pelas obras dela que Antônio Marques, ogã de Oxum do terreiro Casa Branca, passou a conhecer e admirar a sacerdotisa. De acordo com ele, os escritos da baiana fortaleceram seus laços com a religião, além de ter levado o candomblé “para o mundo”. Assim, ela ajudou a explicar, desmistificar e aproximar a liturgia de muita gente.

“Ela não profanou, ela não falou segredos, ela falou verdades [sobre o candomblé]. O que as pessoas não conhecem, que era coisa do diabo. O candomblé era forte lá dentro, mas muita gente passou a conhecer o candomblé por causa de Mãe Stella. Ela foi ousada. Foi à imprensa, rompeu o sincretismo, que fortaleceu ambas as partes. Já pensou não aceitarem sua religião, você se batizar, se crismar, ter que contar toda sua vida para o padre, depois chegar na sua roça? Acabou isso. Hoje você faz se você quiser”, destacou.

Biografia
Mãe Stella liderava o Afonjá há 42 anos, desde que sucedeu, em 1976, Mãe Ondina. É a 5ª na sucessão do terreiro, já comandado também por Eugênia Anna dos Santos, a Mãe Aninha (fundadora), Mãe Dadá e Mãe Senhora.

Também enfermeira, foi consagrada a Oxóssi aos 13 anos, por Mãe Senhora. Além do legado religioso e no campo da literatura, também se notabilizou pela luta contra a intolerância religiosa. Liderou em 1983 a confecção de um manifesto contra o sincretismo religioso, com o apoio de Mãe Menininha do Gantois, Doné Nicinha do Bogum, Mãe Teté da Casa Branca e Olga do Alaketo, durante a II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura.

Foi agraciada com o título Doutor Honoris Causa concedido em 2005 pela Ufba e, em 2009, pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Também foi condecorada com a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura, a comenda Maria Quitéria e a Ordem do Cavaleiro. Deixa um legado de militância pelo resgate e fortalecimento da cultura do povo negro no Brasil.

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