Sempre Aos Domingos: “As mulheres que me compõem”, por Sibelle Fonseca

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Andei pensando em quantas são as ruas, praças e prédios de Juazeiro, que levam o nome das minhas conterrâneas antecessoras. Vivas ou não. Tirando as professoras que dão nomes as escolas, me veio à lembrança, Dona Calu. A do buraco de Calu. Do Parque de Lagoa de Calu.

Lembrar dela me fez lembrar das mil e uma mulheres que existem em mim. Minhas referências.

Dona Calu foi uma dessas. Cheguei a conhecê-la e me dei com ela. Eu tinha uns 8 anos e a imagem da mulher forte, despachada, firme, decidida e barulhenta nunca me saiu. Ela vivia numa chácara e era pra lá que os homens da cidade iam quando precisavam tomar suas decisões políticas. Todos eles queriam o apoio de Dona Calu. Quem souber o nome completo dela me diga, por gentileza. Eu preciso saber. Ela faz parte de mim.

Como faz parte de mim a musicalidade de Professora Emilinha, a irmã de Caçulinha. Elas viviam numa casa que tinha um piano e muitas partituras. Viviam na rua em que fui criada, a Professor Luiz Cursino das recatadas e prendadas “meninas de Curaçá” e da beata Filonila, mãe de Betânia, minha amiga de infância.

A rua da doce tia Elisa, mãe da charmosa Rilzair, colega da também charmosa Nilinha, filha de Dona Mocinha. E da elegante esposa de “Seu Amando”, mãe de Flor e Angélica.

A rua das pretas Joselita e Celita. A primeira foi uma professora brilhante, também atriz, sagaz e engraçada. A segunda tinha galhardia, finesse e usava pó de arroz.

A rua que tem o cheiro da cozinha de Dona Domingas das marmitas e de Dona Itália de Seu Wilson Matos, um homem impoluto e muito inteligente que fez sete mulheres e também Wilsinho.

Mais perto da esquina tinha a professora Maria José, que me deu aulas de catecismo e até um dia desse caminhava pra igreja.

A rua de minha Eleozina da Silva Araújo, a avó mais valente e doce que quero pra todas as existências.

Saindo da rua da minha infância e revisitando as ruas da minha vida, lembro de outras tantas mulheres que vivem em mim.

Vejo a bela pró Vivinha do Instituto Imaculada Conceição e a partir dela, prós Edith, a que me alfabetizou, Luíza, Tânia, Iramar, Naydilene, Marileide, Socorro, Felizete, e já na universidade, Maíta Assis, Giovana e Beth Moreira. Márcia, Odó, Zezé, Lúcia Marise, Nicoleta e Chica. Como não ter minhas mestras em mim?

E as amigas de classe e do meu adolescer? Denise, minha comadre, Mary Grace, Titi, Rossana, Yana, Lormina Barreto, Gilvanice, Patrícia Lane de Dona Gessé e Seu Amadeus, sobrinha de Arnaldo Vieira. Cleide Regina Rangel L’hotelier, Cleidinha da Rua do Paraíso, com ela vivi muitos momentos especiais. Fomos até para o Rio de Janeiro juntas, aos 15 anos e foi Dona Amélia, sua mãe, que fez o meu primeiro aniversário com bolo e amigos. Elas estão em mim.

Como não ver minha militância em Lorena Araújo, Zefinha do Sindicato e em Carminha de Carlão do PT, mãe de Maíra Costa.

Como não ter como mestras a politizada Marise Lanches da Galeria Apolo, esquerdista de lascar e Malu de Moanilton, articulada e pensante. Nélia Costa, uma boa de briga e argumento. Das minhas elas.

Como também são minhas, a dinâmica Terezinha Meireles, a graciosa Gracinha de Dr Alac, a bela Renilde da Rua Antônio Pedro e a simpaticíssima Conceição Pithon, de Petrolina.

A barulhenta Kamayura Saldanha? Ah! Ela é outra mestra minha. Boca livre, boca de se lascar. Revolucionária e ousada.

Maria Pires foi a primeira mulher intelectual que vi de perto e admirei de longe. Eu admirava também a fina e franca Regina Cussa. Marlene de Albino, Alice Mesquita foram as minhas mulheres da Rua Eduardo Brito. Lembrar de Aurenívea Viana, Dona Nivinha de Aluísio Viana, me aquece o coração. Que mulher! Que mãe! Lucia de Antônio Claro, me ensinou muita coisa nesta vida.

Bebela me ensinou a amar Juazeiro. Esmelinda Pergentino a gostar mais das letras. Arlinda Maia, Lúcia Costa e Debinha de Gessé, a dignificar a música. Antonila da França Cardoso e Laíse de Luna Brito me inspiraram a pensar e desejar fazer poesia. Dona Antônia, mulher preta do Quidé, me ensinou o respeito à diversidade, a fé nos ancestrais, o prazer do fogão e das plantas. “Teté”, minha outra mãe preta, mães de meus filhos. Sem ela eu não conseguiria muita coisa.

Iara do cinema, Guiomar e Maria Polpa de Pau me fizeram reverenciar as bruxas, as loucas, e a questionar o que é essa tal sanidade.

Eliana, a goleira, quando não se ouvia falar o termo “trans”, me mostrou que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Foi o machismo que matou Eliana, sou testemunha. Homofóbicos de merda!

Tenho em mim a alma feminina de Hugo Anarvato, de Geraldo Pontes, Franciole, Carlinhos do Salão, Hertz, Madona Cover e Tonha, a nega Tonha, pessoas tão autênticas, sensíveis e teatrais.

Tenho irmã Edir do Colégio Maria Auxiliadora. Ela se destacava pela bondade, diferente da maioria das freiras de lá. Tenho as Lurdes. A Duarte, centenária mestra, e a de Seu Ermi Ferrari, mãe de Guetinha, minha amiga, e de Junolão. Ela fazia um belo rabo de cavalo e ficava parecendo uma mãe d’água. Tenho Dona Ivete também, boemia, cheia de filhos, mulher amante de “Seu Sangalo” com quem cantava lindamente “Noites de Ypacarai”. Festiva, lúdica, espirituosa. Ela me ensinou a furar orelhas e com essa habilidade fiz o segundo furo de muitas amigas.

Tenho Edelminda Borges. Desde que eu abri o olhos ela está na nossa vida. Presente em todas as horas. Para além do DNA, uma irmã da minha mãe e mulher minha também. Tenho a esperta Tia Gerusa, que inventou até de abrir baralho. Tias De Reis e Almerinda, que do meu coração nunca se apartaram. Tenho Judite Palma, Dadá e Araci, as Monteiros. Dona Amélia de Seu Napoleão, Ridalva Brandão e Perpétua do capitão Zé Ivan, as amigas de minha mãe. Tenho minha doce madrinha Constância, Tia Helenita Libório, Tia Lourdes, de Euvaldo Macedo, Tia Eulina de Hirão e a braba Enedina. Tenho Lurdes, tia Zeca e Toinha, da casa mais fofa da rua da Caixa d’água, a J.J. Seabra, onde nasci.

Tenho Dona Rosalba, a avó dos meus filhos, minha amiga, sábia, resiliente, serena.

Tenho todas as coroas coloridas e ainda mais, Clélia Perez e Dinorah Albernaz.

Tenho Irmã Dourado e também “Borrega” da Rua Boa Esperança, onde brilhavam as mulheres de vida livre de Juazeiro. Tenho Chica Terror e Zefinha da Piranga, com muita honra.

Tenho minhas tias Nita, Aldir, Natércia, Tia Regina de Leocádio, a engraçada Castulina, a rígida Eufrosina de Rodelas e Carmem Lúcia, de Casa Nova.

Como tenho de Marta Luz! Lanterna que deu direção ao meu caminho. Tem dela nas minhas cordas vocais, nas coisas que escrevo e nas palavras que solto. Ela me ensinou até o que significa a palavra ” HERCÚLEO”.

Como tenho de minha prima Edésia, um anjo de guarda encarnado na minha vida. Ela cuida de mim desde que eu era uma menina. Nunca largou a minha mão. Sempre me inspirei em sua valentia, ética e honestidade, confesso.

Sou feita também da fibra de minhas imãs. Com a mais velha, conheci os discos, os livros e foi ela que me deu o meu primeiro emprego numa escolinha de banca montada na casa de taipa de Dona Pequena. Ela também me socorreu, antes que as pedras na vesícula interrompessem minha vida. Neyla, minha irmã que nos deixou mais cedo, vive em todos os meus dias. Livinha jamais vai partir de meu coração. A caçula, Emanuela, me ensinou a ser mãe e hoje me instiga a ser mais mulher.

Minha mãe ocupa quase que a totalidade do que sou e reúne em mim todas as dores e alegrias de ser mulher. Ela é uma Maria das tantas. Uma mulher e tanto. Meu espelho DasDores.

O meu feminino é múltiplo, diverso, tem muitas faces. Cheio de anônimas, vitoriosas, sofredoras, submissas, oprimidas, notáveis, guerreiras, libertas, livres, irreverentes, contidas e devassas mulheres.

Sou minha mãe, minhas avós, irmãs e filhas. Sou as muitas mulheres que dão nomes às ruas da mulher que sou.

Lembrei destas, mas outras tantas, certamente, compõem a minha construção de mulher. Sou grata a elas pelas porções que deixaram em mim e tento honra-las na minha caminhada.

Agora eu te pergunto: E as suas mulheres, quais são?

Sibelle Fonseca é radialista, militante do jornalismo, pedagoga, feminista, mãe de nove filhos, sendo 5 de 4 patas, cantora nas horas mais prazerosas, defensora dos direitos humanos e animais, uma amante da vida e de gente.

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