“Meu herói cheio de defeitos e adoravelmente virtuoso”, por Sibelle Fonseca

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Meu pai era um homem bom. Daqueles bem machistas, rígido, severo, valente e de um coração enorme. Ele tinha um coração de mãe, meu pai. Era intenso e se movia pelos extremos, com toda sua autenticidade. Não sabia ser coluna do meio. Ou era oito, ou oitenta. Preto ou branco. Cinza jamais! Não tinha muita paciência, mas era capaz de passar horas brincando com uma criança e lia, diariamente, o Jornal A Tarde. Ele era precipitado, sem pavio. Aventureiro até quando pôde. Não tinha papas na língua e não ficava nunca sem se posicionar, mesmo que aquilo lhe gerasse algum aborrecimento. Dizia o que pensava e fazia o que dizia. Se isso lhe rendesse algum prejuízo, ele assumia. Tinha um senso de justiça sem tamanho. Incomodava com suas verdades e me dizia sempre: “desagrade com a verdade e não agrade com a mentira, minha filha.”

Meu pai era um homem terrivelmente honesto. Tanto que obrigou-me a ajoelhar aos pés do gerente do supermercado Pinguim, um homem chamado Edilberto, pra pedir perdão, em público, por um furto que pratiquei aos 7 anos.  Peguei um bombom e isso me rendeu um ensinamento que trago até hoje. Não levo nem uma caneta Bic de ninguém, muito menos quero levar vantagem em nada.

Meu pai sabia ser humilde, mas se precisasse era o mais arrogante dos homens. Ah se era! Outra coisa que ele me dizia: “Seu nariz deve tá no centro, minha filha. Nem acima, nem abaixo do de seu ninguém. Mas se te olharem de cima, olhe mais alto ainda. Para os humildes se encurve. E segure o olho no olho.”

Falava também de apertar a mão com firmeza, porque mãos frouxas são perigosas. E não via com bons olhos esse negócio de dois beijinhos em todo mundo.

Era um sábio meu pai que só fez até a Admissão. Ele assinava o nome, sabia ler, escrever  e dominava as quatro operações. Não sabia nada de história antiga, nem de antropologia, mas era um filósofo dos bons. Um contador de histórias. Repetidas histórias de personagens desconhecidos que, de tanto ele falar, se tornavam íntimos para mim. Jamais esquecerei da estória da “Garça e do socó” que eu chorava toda vez que ele contava. Meu pai era emoção pura. Era lúdico, um moleque brincalhão, que já idoso, fugia para tomar banho no Velho Chico, de quem era amigo.

Meu pai amava música. E na sua caixinha de fitas cassete ele guardavam suas dores, seus amores. Me pedia pra cantar “Beijinho doce” e sabia como ninguém abraçar apertado e suspirar dobrado. Adorava uma farra, regada a cerveja, som, família e amigos. Logo ficava com o olho miudinho e dava a conversar. O mestre da indaga, um pé de valsa que dançava sorrindo como um menino.

Amava frutas, pirão de bode, uma caninha antes do almoço, caminhadas, circo e parque de diversão (através dele os conheci). Por ser inquieto, não gostava de cinema, mas me levou para assistir a “Marcelino Pão e Vinho”, minha primeira vez diante da sétima arte.

Um subversivo de direita. Legítimo trabalhador que se acomodou na tal classe média. Um pai de família, cidadão do bem, de bem. Desertor do Exército brasileiro e fã de Getúlio Vargas. Semianalfabeto e politizado. Pena que nunca soube que estava mais “pras esquerda”, e, apesar disso, defendia o oprimido, se rebelava, ao seu modo, contra as opressões e tinha um incorrigível senso de justiça.

Não foram poucos os nossos embates. Me dava peia porque eu lia Marx e vendia escondido um jornal comunista no colégio das freiras. Eu o afrontei e o enfrentei e ele resistia. As vezes acabava amolecendo. Sabia morder e assoprar num estalar de dedos. Após os 12 bolos com a escova de lustrar sapato, em cada uma das mãos, e das cinturadas seguras,  se arrependia e prometia os céus. Meu pai metia medo, mas era divertido. Passeava entre o rigor e a leveza, numa maestria que Ave Maria! Batia e afagava. Era mesmo intenso meu pai. Chegado a um drama.

Cheio de defeitos. Abarrotado de virtudes. A maior delas, era a capacidade de pedir perdão e aceitar perdão. A alegria de viver também era seu traço marcante.

Ligeirinho, apressadinho, adorava uma buzina, uma piada, uma pirraça, uma provocação e um telefone.

Era homem difícil meu pai. Nunca foi fácil lidar com seu gênio. Não vou transformá-lo em santo agora. Eu estaria desobedecendo a sua ordem de não ser hipócrita. Mas quem disse que os pais são perfeitos? São humanos e vítimas de uma construção social perversa.

Ficamos sem nos falar por um curto e necessário tempo de amadurecimento. Nada significante diante do tempo que nos amamos e aprendemos juntos a viver. Ele era carinhoso demais. Afetuoso demais. Protetor demais. Ele só sabia ser demais em tudo. Meu pai era superlativo, ativo, terno, fraterno. Uma confusão.

Nos seus últimos tempos, enfrentando brava e dignamente um câncer, meu pai me chamou pra pedir perdão. “Desculpe seu pai pelos exageros, minha filha. Você desculpa? ”

Respondi com a mesma pergunta: “Desculpe sua filha pelos exageros, meu pai. O senhor desculpa?”

Daí me joguei no seu leito para o abraço mais seguro e verdadeiro que já senti. Entendemos que fomos o melhor que pudemos e até quando erramos, era querendo acertar.

Reconhecemos nossos exageros e já com sua finitude ao lado, vimos a bobagem que é perder tempo com convenções e intolerâncias. Nos perdoamos entendendo que a vida é assim mesmo e isso é tudo muito natural

Andam dizendo que eu sou igualzinha a ele, quando tentam me definir. E eu fico toda cheia de orgulho, podem crer.

Ele foi embora há 14 anos e se transformou na ausência mais presente na minha vida. Ele vive em meus gestos, nos meus modos, no que falo e digo para os meus filhos. Ele vive no que vejo no espelho. Meu nariz feio é igualzinho ao dele. Meu olho brilha pela vida que nem o brilho que eu via nos olhos dele. Sua teimosia ainda me acompanha. Sua intensidade nas coisas também.

Carrego a grande maioria dos seus conselhos e princípios. Joguei fora as crenças, as verdades sem nenhum sentido, os traumas. Tento ser o que meu pai queria ser e sou o que ele jamais quis que eu fosse. Ele também me dizia: “Minha filha, gente como você sofre mais. É mais difícil”. Hoje até acho que ele dizia isso como quem dissesse pra si mesmo. Não deu pra eu ser diferente do que sou, meu pai! Se nem o senhor conseguiu esse feito, como eu poderia?

Quando um seu conhecido me aborda, perguntando se sou sua filha, respondo orgulhosa: “Sim, eu sou Sibelle de Manoelito”, com a tranquilidade de quem teve um pai bom caráter, um lutador boa gente, solidário, empático, amigo dos amigos, que deu a família o que melhor que podia, que exigia ser chamado de senhor e não tinha vergonha de chorar, de amar, de dizer o que sentia, o que pensava e o que queria.

Eu nunca deixei de ser Sibelle de Manoelito do leite. A filha de Manoel Justiniano da Fonseca Filho, meu Highlander, meu guerreiro imortal!

Na cabeceira da minha mesa é o senhor que senta, meu pai! Com todos os seus valores e ensinamentos. Meu herói cheio de defeitos e adoravelmente virtuoso.

Sibelle Fonseca é radialista, militante do jornalismo, pedagoga, feminista, humanista, mãe de 4 filhos, humana de Diana, cantora nas horas mais prazerosas, defensora dos direitos humanos e animais, uma amante da vida e de gente.

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