Coisa rara pra mim é fazer passeios em shopping. O confinamento me incomoda, o barulho me deixa tonta e o apelo ao consumo me irrita, deveras.
Mas, numa tarde dessas, forcei-me a ser uma mulher normal e passei uma tarde em um grande center da capital. Meio sem graça, sem apetite para as vitrinas, subi e desci os pisos e o que gostei mesmo foi de constatar que eu não precisava de nada daquilo que estava exposto. O que mais eu comprasse, seria puro exagero ou rendição ao supérfluo.
Eu não sou uma pessoa de coisas e de moda, sou mais gente e sentimentos.
Pois bem, passando por um dos corredores do shopping, fui abordada por um jovem vendedor de cosméticos que me lançou a seguinte pergunta: – “O que a senhora usa para esconder as linhas de expressão?”
– ” Nada”, eu disse, displicente.
E ele insistiu – “Como nada? um rosto tão bonito, precisa de cremes para parecer jovem. Temos aqui vários produtos que vão transformar a sua pele e deixá-la vinte anos mais jovem. Eles são infalíveis”, propagandeou o rapaz.
Fui até delicada com ele, mesmo diante de abordagem tão invasiva e segui meu passeio, respondendo apenas com um olhar de desinteresse e um “muito obrigada”, sem graça.
Ele me deixou pensativa e disso eu gostei. Só assim meu passeio seria acompanhado por pensamentos mais produtivos, que não sobre as liquidações, novidades e tendências da nova estação. Assim ele me fez fugir daquele cenário de shopping center. Gosto de pensar. Gosto demais de bulir com o óbvio, sair da superfície e desafiar o senso comum.
Sentei pra tomar um chopp e viajei na daquele rapaz vendedor, muito bem treinado para vender aparência, padrão, estética, promessas de juventude eterna, produtos milagrosos em voga.
Deu vontade de chamá-lo para sentar comigo, tomar uma bebida e conversar sobre “linhas de expressão”.
Começaria o papo perguntando, se ele sabia o que eram “linhas de expressão”.
E lhe diria: “Garoto, esse rosto que você achou bonito é muito bem cuidado. Começo a cuidar dele logo quando acordo e olho-me no espelho. Fito-o e digo: Mais um dia está começando e nós temos uma missão: sorrir para quem precise e mereça; fechar-se para a maledicência e reagir a maldade, a amargura, a falta de respeito com o outro, as manifestações raivosas e carregadas no preconceito, na arrogância e na prepotência.
Digo-lhe ainda: Libero-o para ser feio com os estúpidos, rosto meu! Libero-o também para ser indiferente e até superior com os tolos. Libero-o para fazer caretas para os caretas e para as crianças que encontrar, só pra brincar com elas. Pode dar a língua de gaiatice ou de irritação mesmo, quando toparmos com algum chato. Libero-o para chorar até se desfazer. Para se desfigurar. Libero-o para ser sedutor e dar aquela piscada para quem quiser. E encarar o seu objeto de desejo, segurar o olho e dizer “eu te quero”. Libero-o para ruborizar-se de nossas besteiras, mancadas, vacilos, micos. Também diante de um elogio. Libero-o para ser limpo, sem tintas, sombras e batom. Está liberado ainda, para maquiar-se do seu jeito com o velho rouge e pó de arroz.
Depois desta primeira conversa, meu jovem, eu boto a cara no sol, raramente com protetor fator 50, e vou viver, sentir, experimentar, ousar, desafiar, aprender, resignificar tudo, colorir, lutar, resistir. Vou botar emoção em todos os momentos das 24 horas que terei pela frente.
Isso se repete todas as manhãs de algumas décadas. E tudo isso produziu essas “linhas de expressão”.
Faça um esforço e tente ler nestas linhas, as muitas vitórias, derrotas, gozos, desesperos, partos, chegadas, enlaces e desenlaces. Tente ver a dor e o orgasmo de parir quatro filhos, de amar tantas vezes, de decepcionar-se outras tantas. Tente ver conquistas, perdas, ganhos. Tente ver vida por aí, meu belo rapaz! E vida em abundância.
Sinto muito, mas eu não quero ver essas linhas apagadas, nem aplacadas. Seu produto pode ser muito bom, mas não para mim. Eu passo cremes é no coração para que ele fique tão macio quanto a generosidade e a empatia. Mas também firme tal qual a coragem de validar-me e brigar pelo meu lugar no mundo. Passo creme pra que ele fique sedoso e se torne mais leve. E tão luminoso que atraia gente boa, poesia, arte, melodias, irreverências e o novo, o novo que me remoça.
Meu rapaz, eu passo colágeno é a na cabeça, para que ela abra todo dia uma nova brecha e não enferruje, jamais. Meu colágeno tem som, tem gargalhadas, soluços, tem cor de gente, tem gosto diverso e cheiro muito bom. Ele combate a flacidez das relações e dos sentimentos. Ele combate a rigidez das crenças, das convenções e imposições sociais. Acho que ele até me ilumina, sabe?
Meu hidratante é água e amigos, eles evitam qualquer ressecamento e amargura.
Essa é minha rotina de cuidados pessoais. É assim que me sinto confiante o dia todo, uma vida toda!
Agora, cá pra nós, você tem por aí algum ácido poderoso na sua prateleira, um antioxidante bem bom? Ahhh, porque se tiver, este eu quero!
Tenho muitos radicais livres que precisam ser combatidos! Não culpo somente o meu cigarro e o absoluto desprezo por atividade física por eles não. Tenho muitos danos é na alma, resultado da queima de oxigênio com experiências inúteis e ordinárias. Isso sim fez mal as minhas células.
Aceito também um bom protetor solar. Preciso aprender a usá-lo. Mas só vale um que não escorra, não me tire a visão e não me incomode. Também que não traga a indicação de alguma influencer imbecil. Elas são um porre!
Agora, por favor, me deixe com minhas linhas de expressão.
Terminaria a conversa com aquele jovem vendedor de ilusões, desejando-lhe sucesso na vida e muitas, muitas linhas de expressão.
Sibelle Fonseca é radialista, militante do jornalismo, pedagoga, feminista, mãe de nove filhos, sendo 5 de 4 patas, cantora nas horas mais prazerosas, defensora dos direitos humanos e animais, uma amante da vida e de gente.
Ufa!!! Que texto!!! Me deixei envolver pelas expressões a tal ponto que a lágrima escorreu limpa e suave na minha face… Com certeza irei ler outras vezes. Parabéns garota!!
Sibelle essa suas palavras deram um verdadeiro animo na minha vida.
Tenho 40 anos, e muitas vezes coloco-me para baixo, muitas vezes por padrões muitos toxicos.
Obrigado amiga, por essa mensagem, sinto-me amado por hoje.