Sempre Aos Domingos : “Sibelle de Manoelito do leite”, por Sibelle Fonseca

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“É verdade, Sibelle deixou de ser minha filha e agora eu que sou o pai de Sibelle”, declarou meu pai certa feita, após eu me tornar conhecida por força da exposição na TV e no rádio, e as pessoas o abordarem na rua, querendo saber se era ele o meu pai.

Talvez tenha aí uma queixa do homem que sempre fora a referência numa casa de seis mulheres, em que ele dominava, comandava e era o maior expoente. De repente ver a filha do meio, a menina rebelde, que subverteu suas regras, deu testa com ele, debatia política, combatia sua posição de direita e assumiu um jeito de viver bem diferente do dele, se tornar uma mulher de alguma expressão (admirada por alguns, odiada por tantos), incomodava um pouco o meu velho pai.

Mas eu não tenho dúvida alguma do orgulho que sentia quando respondia que sim, ele era o pai de Sibelle. Não foram poucas as vezes que ele pegou minhas brigas, e mesmo sem as vezes concordar com minhas bandeiras, virava rapidamente o maior militante, para me defender das más línguas. Na hora da raiva, chegou a ameaçar dar uma surra em um falador de direita que vivia me atacando, e até deu um safanão na pessoa errada, confundindo-a  com um outro meu algoz.

Meu pai era comandado pela emoção. Não tinha pavio. Meu pai era muito amoroso também. Justo. Justiniano. Ele se comovia facilmente com a dor do outro e dava a camisa, se fosse preciso. Era um sonhador, que não temia riscos e se aventurava. Seguia seu coração. Meu pai era radical nos seus posicionamentos. O certo era certo, o errado era errado e ponto final. Com ele era tudo preto no branco. Sua palavra dispensava assinatura. Era esquentado, mas sabia se arrepender. Lembro que vinte minutos após as “pisas” que me dava, pedia perdão e me prometia os céus.

Morava uma criança dentro de meu pai. Eu a via nos olhos dele, nas suas brincadeiras, nas histórias que nos contava, nas suas birras, quando ele dançava sorrindo, quando arreliava os netos. Tinha uma criança no avô dos meus filhos. O melhor avô. Ele reservava o sábado para a folia com os netos, dava a semanada, beliscava de brincadeira, participava das festinhas de escola e adorava a casa cheia deles. Meu pai era engraçado, lúdico. Uma figura impagável!

Dialético, amava uma prosa, não perdia a piada e tinha uma língua afiada para qualquer desaforo. Ele contava mil vezes a mesma história, sempre nos trazendo personagens da sua vida que, mesmo sem os conhecermos, se tornaram íntimos. Amava uma conversa ao pé do balcão, no barzinho da esquina, na banquinha do jornal, que lia todos os dias. De pouco estudo, ele era inteligente, gostava de música, de cordel, cidadão bem informado, leitor contumaz, um comentarista político, e ainda dominava as quatro operações. Fazia conta de cabeça, tropeçava na escrita e falava com a alma.

Meu pai era um homem bom. Íntegro, intenso e integral. Sem meio termo, sem nunca ficar em cima do muro. Oito ou oitenta. Quando amava, amava. Quando não gostava, bradava, bradava, mas tinha também um coração mole. Era um danado meu pai.

Dentre tantas frases que guardo dele, duas se tornaram lemas: ” Desagrade com a verdade, e jamais agrade com a mentira”. “Nunca baixe a cabeça para ninguém, e nem a eleve. Olhe de igual para igual”. Com elas me ensinou o que é autenticidade, honestidade nas relações, fraqueza, igualdade, respeito, altivez e humildade.

Meu pai me ensinou muitas coisas, até com a “pisas”, com os  doze “bolos” em cada mão, com as atitudes mais severas.

Meu pai é a fundação da casa que sou e vive em todos os meus cômodos, também no sótão. Senta na cabeceira da mesa.

São dele meus olhos e também minha dignidade. Quando escuto que “puxei” a ele, sinto muito orgulho de mim mesma.

Quando um seu conhecido, me aborda perguntando se sou sua filha, respondo com um orgulho arretado, uma alegria imensa: “Sim, eu sou Sibelle de Manoelito”, com a tranquilidade de quem teve um pai bom caráter, um lutador, aguerrido, generoso, amigo dos amigos, que deu a família o que melhor que podia, que, exigia ser chamado de senhor, que errou tentando acertar, que acertou muitas vezes, que não tinha vergonha de chorar, de amar, que não tinha medo de dizer o que sentia, o que pensava e o que queria.

Eu nunca deixei de ser Sibelle de Manoelito do leite. A filha de Manoel Justiniano da Fonseca Filho, meu Highlander, meu guerreiro imortal! Mora agora em terras altas e por aqui faz uma falta tremenda.

Sibelle Fonseca é radialista, militante do jornalismo, pedagoga, feminista, humanista, mãe de 4 filhos, humana de Diana, cantora nas horas mais prazerosas, defensora dos direitos humanos e animais, uma amante da vida e de gente.

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