A ditadura militar brasileira, que se estendeu de 1964 a 1985, foi profundamente marcada pela influência dos Estados Unidos, em um contexto global dominado pela Guerra Fria. Nesse período, a polarização entre capitalismo e comunismo e principalmente os desdobramentos da revolução cubana, levaram os EUA a adotar uma política de intervenção na América Latina, visando impedir o avanço de governos de orientação socialista. No Brasil, essa estratégia foi determinante para o golpe de 1964, que depôs o presidente João Goulart.
Documentos históricos revelam que o governo norte-americano não apenas apoiou a conspiração contra Goulart, mas também articulou o envio de recursos e suporte logístico aos militares brasileiros. A chamada “Operação Brother Sam” previa o envio de armas e combustíveis para assegurar o sucesso do golpe. Após a tomada de poder pelos militares, os Estados Unidos continuaram a oferecer suporte ao regime, promovendo treinamentos, empréstimos e cooperação em inteligência. Essa parceria reforçou a adoção da Doutrina de Segurança Nacional, que justificava a repressão interna como parte de uma luta global contra o comunismo, resultando em censura, tortura e perseguições.
Apesar das graves violações de direitos humanos e da repressão política, uma parcela da população brasileira ainda idealiza o período da ditadura militar. Esse fenômeno reflete não apenas uma nostalgia seletiva, mas também a desilusão com o cenário político atual. Muitos enxergam no regime militar uma época de segurança e estabilidade, ignorando os abusos cometidos. Essa percepção é reforçada por uma educação histórica insuficiente, que muitas vezes não aprofunda os debates sobre as consequências do autoritarismo.
A crise política e econômica vivida pelo Brasil nas últimas décadas também alimenta a desconfiança nas instituições democráticas. Escândalos de corrupção, ineficiência governamental e a sensação de impunidade contribuem para o clamor por medidas autoritárias que prometam “colocar ordem” rapidamente. A polarização política intensifica esse sentimento, resgatando retóricas anticomunistasultrapassadas que associam propostas progressistas a ameaças ideológicas.
Esse contexto de divisão ideológica e nostalgia autoritária também se reflete em manifestações culturais, como no caso do filme Ainda Estou Aqui. A obra, dirigida por Walter Salles e baseada no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, narra a luta de Eunice Paiva após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva, durante a ditadura militar. Apesar de seu sucesso crítico e comercial, com arrecadação superior a R$ 62 milhões e indicação para representar o Brasil no Oscar, o filme enfrentou campanhas de boicote promovidas por grupos de extrema-direita.
Curiosamente, enquanto esses grupos rejeitam o filme sob a alegação de que ele possui uma “agenda política”, a própria ausência de produções que apresentem o ponto de vista dos militares é emblemática. Muitos dos agentes do regime evitam expor suas narrativas justamente porque sabem que cometeram crimes em nome do regime. A censura, tortura e assassinatos sistemáticos não encontram justificativa moral, mesmo sob o discurso de combate ao fantasma do comunismo. Essa ausência reflete um silêncio que evidencia as contradições daqueles que tentam romantizar o período.
A contradição dos boicotes é ainda mais evidente quando consideramos que os responsáveis por essas campanhas se autodenominam patriotas, mas rejeitam uma obra nacional que retrata um período crucial da história do país. O paradoxo se intensifica ao lembrar que Fernanda Torres, que interpreta Eunice Paiva, venceu o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Drama, tornando-se um orgulho internacional para o Brasil. Esse reconhecimento ressalta a importância do filme como uma contribuição cultural de alto nível, mas foi ignorado por aqueles que rejeitam o projeto simplesmente por sua narrativa histórica.
Outro fator que impulsiona o desejo pelo retorno do regime militar é o medo da criminalidade. Em um país marcado por altas taxas de violência, muitos veem o autoritarismo como uma solução eficaz para os problemas de segurança pública. Essa percepção é frequentemente alimentada por discursos políticos que romantizam o período militar e apresentam os direitos humanos como um obstáculo à justiça.
A influência dos Estados Unidos na ditadura brasileira, o desejo contemporâneo pelo retorno desse regime e a recepção dividida a obras culturais como Ainda Estou Aqui estão interligados por uma narrativa de poder, memória seletiva e controle. No passado, os interesses norte-americanos moldaram a política brasileira, consolidando um governo autoritário em nome da luta contra o comunismo. Hoje, a insatisfação com o presente, aliada à desinformação e à constante propagação de notícias falsas na internet, reforça a ideia de que a volta da violência do autoritarismo poderia ser uma alternativa viável.
Refletir sobre esses aspectos é essencial para compreender os desafios enfrentados pela incipiente democracia brasileira. A educação histórica, o fortalecimento das instituições e o combate à desinformação são passos fundamentais para evitar que os erros do passado sejam repetidos, e para construir um futuro baseado em liberdade, justiça e igualdade, para todos.
Por João Gilberto Guimarães Sobrinho, juazeirense, produtor cultural, cientista social formado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco, Pós graduando em Políticas Públicas e direitos sociais, pesquisador das Políticas Públicas de Cultura.