“Narciso não se reconhece mais no espelho” por João Gilberto Guimarães Sobrinho

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No mito clássico de Narciso, o jovem é condenado a se apaixonar pela própria imagem refletida em um lago. Incapaz de se afastar da visão de si mesmo, ele sucumbe terrivelmente à própria obsessão, simbolizando a armadilha da vaidade e do egocentrismo. Hoje, o espelho que condena Narciso é a sociedade de alto consumo, que reflete imagens idealizadas, distorcidas e na maioria das vezes inatingíveis. Como o escritor irlandês Oscar Wilde bem retratou em seu romance O Retrato de Dorian Gray, o culto à aparência e à juventude eterna pode levar a um profundo vazio e à destruição do que há de mais humano.

Vivemos em uma época em que o espelho não é mais um simples objeto; ele está em todo lugar, multiplicado pelas telas de celulares e redes sociaisonde seres humanos exibem seus corpos e vidas em troca de likes que não se traduzem jamais em afeto. Nessas superfícies digitais, estritamente artificiais, os padrões de beleza são editados,moldados, filtrados e exagerados, criando um paradoxo cruel: ao mesmo tempo que prometem aceitação e pertencimento, alimentam umainsatisfação constante consigo mesmo. A cultura do consumo explora essa insatisfação, vendendo soluções rápidas em forma de cosméticos, cirurgias e dietas milagrosas, que em alguns casos podem levar à morte ou a deformações irreversíveis.

Esse círculo vicioso não é apenas comercial; ele é acima de tudo social. As pressões que a sociedade impõe sobre os corpos modernos são sutis e muitas invisíveis ao primeiro olhar, especialmente para mulheres e jovens. Quem não se encaixa nos padrões muitas vezes se sente rejeitado, e relegado à margem, enfrenta discriminação e preconceito. Essa exigência por conformidade física se reflete em níveis alarmantes de adoecimento mental: transtornos alimentares, ansiedade e depressão são cada vez mais comuns. A busca pela perfeição então se torna, na verdade, uma jornada dolorosa para longe de si mesmo.

Oscar Wilde nos alerta que, ao vender a alma — ou a identidade — para preservar a imagem perfeita, corremos o risco de nos tornarmos estranhos a nós mesmos. Dorian Gray destrói tudo ao seu redor para manter intacto o retrato perfeito de sua juventude; de maneira semelhante, muitos hoje sacrificam a saúde, as relações e a autenticidade para se aproximar de padrões inalcançáveis. E quando o espelho, literal ou figurado, reflete a realidade nua e crua, a crise de identidade torna-se inevitável.

Para reverter esse cenário, é urgente repensar o que consideramos belo e valioso. Precisamos de um espelho que não deforme, mas que reflita a imensa pluralidade da existência e da experiência humana. Essa transformação não é fácil, pois desafia um sistema brutal que se enraizou na sociedade através de  uma prática explicitamente capitalista, que lucra com a nossa insatisfação enquanto manipula nossos desejos e se apodera de nossas próprias vontades.

Somente questionando e desafiando os padrõesimpostos, poderemos celebrar a diversidade, possibilitando assim, o resgate do pobre Narciso do lago profundo,  devolvendo-lhe a capacidade de se enxergar, não como uma imagem idealizada, mas como um ser humano pleno e real, ciente e pleno de si mesmo.

A verdadeira beleza está na aceitação de quem somos, com todas as nossas singularidades, qualidades, rugas e defeitos. Somente assim, Narciso poderá finalmente se libertar do espelho que o aprisiona.

Por João Gilberto Guimarães Sobrinho, juazeirense, produtor cultural, cientista social formado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco, Pós graduando em Políticas Públicas e direitos sociais, pesquisador das Políticas Públicas de Cultura.

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