O errante Shakespeare nunca foi tão brasileiro

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Lado A – O brilho do caos encantado

Se Shakespeare, em sua genialidade, tivesse nascido em terras brasileiras, talvez sua obra fosse repleta de cores mais vibrantes, gestos mais expansivos e uma sonoridade capaz de ecoar por vielas e praças. E é exatamente essa a sensação que o espetáculo Prazer, Shakespeare ou Peças de Bolso nos proporciona: um vendaval de irreverência que, sob a aparente desordem, revela um teatro profundamente estudado, refinado na sua anarquia e irresistível na sua energia.

A trupe de quatro atores nos conduz a um universo onde a ludicidade está no centro de tudo. Desde os primeiros instantes, fica claro que este não é um teatro para se assistir passivamente. O público é tragado por uma encenação vibrante, barulhenta e deliciosamente caótica, que se aproxima do espírito original das apresentações elisabetanas. Aqui, os atores não só interpretam, mas multiplicam-se em personagens, mudam de tom e de corpo num piscar de olhos, desafiam a seriedade com exageros caricaturais e ainda assim conseguem manter a plateia enfeitiçada, o destaque por aqui é a gentil comicidade da atriz  Zuleika Bezerra, que comedida, se mostra deveras generosa.

O figurino é uma extensão desse delírio organizado. Exagerado, bufante e assumidamente teatral, ele reforça a proposta do diretor Thom Galiano de criar um ambiente onde a expressividade é a regra e a sobriedade é um conceito que não teve convite para a festa. A sonoplastia, produzida pelos próprios errantes, é uma atração à parte: com toques de teatro de rua e uma pegada circense, ela dá ritmo à encenação e conduz os espectadores a diferentes estados de emoção, do riso frouxo à surpresa mais sincera.

E o que dizer da iluminação? Ora técnica, ora improvisada pelos próprios atores, ela é manipulada com maestria para direcionar olhares e criar atmosferas. Como um ilusionista habilidoso, o elenco sabe exatamente quando iluminar um gesto ou um rosto, transformando cada cena em um jogo interativo de luz e sombras.

Porém, o maior triunfo desta primeira parte do espetáculo é a aparente ingenuidade de sua proposta. Por trás da explosão de cores, gestos e sons, percebe-se uma intenção minuciosa do diretor: este é um teatro que não subestima seu público, mas também não tem medo de brincar com ele. Pode até lembrar, num primeiro olhar, um teatro infantil, mas o que está em cena é um trabalho elaborado, fruto de anos de dedicação ao ofício. Um teatro de errantes, sim, mas de errantes que sabem muito bem para onde estão indo.

Agora, é esperar o Lado B para ver se essa festa continua ou se o caos toma conta de vez…

Lado B – O peso da tragédia

Se a primeira parte de Prazer, Shakespeare ou Peças de Bolso nos convida a um festim teatral de risos e cores, a segunda parte nos arrasta, sem piedade, ao abismo da tragédia. Aqui, não há mais brincadeira. O tom muda abruptamente quando a trupe mergulha na adaptação de um recorte de Otelo, e o que se desenrola no palco é nada menos que uma epifania dramática.

O grande destaque dessa etapa é, sem dúvida, Iago. Interpretado por José Lírio, sua perfídia é tão densa que se torna quase palpável. Sua habilidade em entorpecer o pobre Mouro de Veneza, vivido com intensidade por Rafa Moraes, é de uma malícia desconcertante. O embate de olhares entre os dois personagens carrega toda a força do texto shakespeariano, e o espectador se vê imerso no horror de uma manipulação cruel e inexorável.

O figurino, antes exuberante e bufante, agora ganha outra função. Otelo veste uma túnica estilizada, impondo sua presença trágica. Iago, paradoxalmente puro em sua indumentária branca, escarnece do significado de sua aparente inocência, enquanto Ofélia (Raphaela de Paula) surge vestida de vermelho, em um intenso monólogo que não pede licença para escandalizar e denunciar a barbárie do Mouro feminicida.

E então há Desdêmona. Terrivelmente objetificada, desprovida de voz, de corpo, mas não de alma, ela paira no palco como um animal prestes a ser abatido. Sua presença é um silêncio ensurdecedor, uma sombra que reflete a brutalidade da cena.

O que se vê aqui é a demonstração inequívoca do talento da trupe. Se na primeira parte a energia e a alegria reinavam, nesta segunda a intensidade dramática se impõe com igual potência. A direção prova sua versatilidade ao transitar entre os extremos, e os atores reafirmam sua força ao sustentar esse peso com entrega total.

Prazer, Shakespeare ou Peças de Bolso é um espetáculo que desafia o espectador a atravessar uma montanha-russa de emoções. Embora Shakespeare possa parecer estranho ao público, vale lembrar que ele está mais que presente em nossa dramaturgia pindorâmica. Minha novela favorita, talvez a única que realmente gosto, é “O Cravo e a Rosa”, um grande sucesso que nada mais é do que uma adaptação de “A Megera Domada”. Mais além, temos a tira de couro sem sangue na esperteza de Chicó em “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, um trecho livremente “inspirado” no desfecho de “O Mercador de Veneza”. O monólogo do judeu Shylock, aliás, ganhou nova vida na interpretação magistral de Lázaro Ramos em “Ó Paí, Ó”. A influência do bardo também se faz sentir na obra do poeta paraibano Augusto dos Anjos, e a lista segue interminável. Shakespeare caminha entre nós, e “Peças de Bolso” reafirma essa verdade de forma vibrante e inquestionável.

Sobre o “Crítico: É correto afirmar que os críticos nada mais são do que os senhores da corte, que se divertem com a miséria alheia, e no meu caso sou um homem que, na angústia de quem ser ou não ser, se fantasia de arremedo de poeta, poeta que se vale de máscaras o tempo todo, mas nesse festim da vida, não somos todos nós, apenas atores, invulgares e absortos na nossa própria solidão?

João Gilberto Guimarães Sobrinho, Petrolina, 20 de março de 2025.

Sobre o espetáculo:

Colagem das Obras de Shakespeare
A Megera Domada, Sonho de Uma Noite de Verão e Otelo, o Mouro de Veneza
Paródias: Romeu e Julieta e Hamlet

Elenco

Raphaela de Paula – Ofélia, Tonho Bobina e Romão
José Lírio Costa – Tião Fominha, Catharino(a), Prólogo, Leão e Iago
Rafa Moraes – Will, Aprendiz, Julie-Ta-Tá e Otelo
Zuleika Bezerra – Calderón, Muro e Gertrudes
Equipe Técnica
Maria Flor de Paula – OFF
Fernando Pereira – Iluminação
Moésio Belfort e Carlos Hiury – Trilha Original
Murilo Carvalho – Cenografia
Diego Ravelly e Maria Falcão Agrelli – Orientação de Figurinos
Maria José de Oliveira – Costureira
Adriel Marques – Assistente Técnico

Direção e Produção

Thom Galiano – Encenação, Dramaturgia e Arte
Produção: José Lírio Costa, Rafa Moraes, Raphaela de Paula, Thom Galiano, Zuleika Bezerra, Adriel Marques e @truperrante
Ascom

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