Cala fundo em mim, às vésperas dos 58 anos, a expressão “sem pai nem mãe”. Chega a dar medo e me faz voltar ao pesadelo que eu tinha, quando menina, de estar correndo nua pela rua, sem manto e anágua. Perder pai e mãe é abandono. Desproteção para a menor chuva que caia. É não ter nenhum vagalume no escuro e nem o menor abrigo numa tempestade. Para onde correr? A quem recorrer? Corre-se nu a partir da partida deles.
A orfandade é uma desintegração da gente mesmo.
Meu pai desencarnou há 14 anos. Minha mãe tem pouco tempo. Fiquei “sem pai, nem mãe”, e assim me recoloco no mundo – Agora é comigo. Virei uma adulta de verdade aos quase 58 anos. Somente com eles eu me sentia ainda uma menina, aquela adolescente insurgente.
Talvez, pegada na emoção, penso que ser “sem pai nem mãe” também seja recrudescer, tornar-se mais intensa na vida que tá correndo e mais convicta da finitude de tudo.
Quando perdi meu pai, a presença de minha mãe foi como um lenitivo. Eu, ainda que incompleta, tinha meu cordão umbilical no mundo. Meu útero, aquele canal comigo mesma, uma prova da placenta. Meu umbigo estava ainda aqui.
Ficar órfã de mãe, considerando a que eu tive, é pisar em falso, mas também seguir a varinha que ela traçou no chão para os meus passos.
Chegando aos 58 anos, dois para pisar na terceira idade, a penúltima do ciclo de vida neste plano terrestre, ponho-me a pensar na minha existência e nos ensinamentos da minha Mãe.
Aprendi com ela que, em algumas situações da vida, devemos tirar tudo por menos. Faço isso, mas somente naquelas que estão fora do meu controle.
Ontem, pensando em minha mãe, perguntei a menina que fui se ela orgulhava-se da mulher que me tornei. A resposta me veio em forma de uma oração de mim mesma. Creio que intuída por minha mãe que sabia que sou feita de letras, palavras, sons e sentimentos.
“Ai de mim, meu Deus”!
“Ai de mim se eu não soubesse escrever. Ai de mim se eu não tivesse gritado. Ai de mim se eu não tivesse cantado e escutado. Ai de mim se eu não tivesse amado. Ai de mim!
Ai de mim se eu não tivesse me despedaçado inteira e ligeirinho me refizesse. Se ninguém tivesse me ferido, me iludido ou me roubado. Ai de mim, se eu não tivesse feito a primeira eucaristia, rezado um sem fim de padres nossos e me debelado nas fogueiras. Ai de mim se eu não tivesse suportado, aturado, resistido. Se não tivesse me descabelado, subido nas mesas, metido dedo na cara e ter beijado rostos e bocas, ai de mim ! Se eu não tivesse posto a mesa, a comida na panela, a cara pra bater, o coração pra pulsar, se não tivesse deitado nas camas que desejei e nem segurado as bandeiras que escolhi, ai de mim! Se não tivesse sonhado, acordado de pesadelos, batido o pé, levantado o dedo, dado o pulo da gata e enfrentado os leões, ai de mim. E se eu não bradasse, não desatasse os nós da garganta, desfeitos laços e amarrado eternos afetos. Ai de mim se o medo que senti tantas vezes me paralisasse e a insegurança me sucumbido ou amargurado. Se perdesse a fé, a cabeça, os trilhos, os desejos, o tesão pela vida, se não perdesse a vergonha, os pudores, a cartilha, o manual, o que seria de mim?
Portanto, me digo: Bem aventurada sou eu! Longe de ser santa ou de querer ser exemplo, eu sou o que sou e sempre desejei ser. Digo a menina que fui- sobrevivemos querendo mais da vida. Sem revoltas, culpas ou arrependimentos. Tirando por menos o que der, enfrentando o que vier, e tirando a vida por mais.
Aprendendo a viver as bem-aventuranças no dia a dia. Tentando a bondade, a busca pela justiça e pela liberdade de todos os seres, a disposição para atrair peles e as dores do mundo, e, invicta, repelindo, sem medo, tudo aquilo que não pode ser de Deus.
Pegando na mão da menina que fui e da mãe que vive em mim, encontro a sabedoria de nós mesmas, do nosso propósito, dos nossos quereres e poderes.
Sinto muita saudade da minha mãe e também da menina que fui.
Bem aventuradas somos!
Sibelle Fonseca é radialista, militante do jornalismo, pedagoga, feminista, humanista, mãe de 4 filhos, humana de Diana, cantora nas horas mais prazerosas, defensora dos direitos humanos e animais, uma amante da vida e das gentes.