Uma mulher negra busca trocar de operadora de internet e decide folhear uma revista para ver as marcas anunciadas. A chance de essa consumidora encontrar alguém parecido com ela é exígua: apenas 4% das pessoas retratadas em propagandas desses serviços têm seu perfil.
O mesmo ocorreria com um homem negro buscando um novo modelo de telefone celular, já que nessa publicidade são só 6% dos representados.
Brancos ainda respondem pela maioria dos retratados na publicidade de veículos de comunicação impressos, mostra estudo feito pelo Gemaa (Grupo de Estudos de Ação Afirmativa) da UERJ obtido pela Folha, que analisou a diversidade nos anúncios por um período de 30 anos.
Os pesquisadores compararam as propagandas publicadas na revista de maior circulação nacional no período, a Veja, entre 1987 e 2017.
O resultado mostra que, embora sejam maioria na população, com 55,8% dos brasileiros, de acordo com o IBGE, pretos e pardos ainda são subrepresentados como consumidores de produtos.
No primeiro ano analisado, brancos eram 84% das figuras humanas em publicidade, ante 9% de pretos e pardos. No último, foram 78%, ante 16% de pretos e pardos.
“Há uma normatividade branca, que coloca o branco como norma de humanidade. Ele historicamente é sempre colocado como referência”, diz Marcelle Felix, doutoranda em sociologia pelo Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) e corresponsável pelo estudo.
Os dados demonstram que, no total de 30 anos, mulheres pretas ou pardas são o grupo que menos apareceu nas propagandas: apenas 4% das figuras humanas (que levam em conta fotos, mas também representações gráficas) são desse grupo demográfico.
Os homens negros vêm em seguida, com 8% de representação total ao longo de todo o período analisado. Já os homens brancos são os que mais aparecem, com 46% das pessoas retratadas. As mulheres brancas somam 37%.
“Por que que eles não estão na publicidade? As pessoas não se identificam com pessoas negras? Por acaso o produto deixaria de ser vendido porque são pessoas negras? É um reforço de racismo do cotidiano”, questiona Felix.
Ao analisar as publicidades da revista, o estudo pretende dar um panorama de toda a publicidade veiculada em meios impressos no país, diz o vice-coordenador do Gemaa, Luiz Augusto Campos.
“Se a gente pegar outros veículos de comunicação similares à Veja, as publicidades serão similares”, afirmou.
A análise mostrou ainda uma discrepância entre a publicidade de empresas privadas –que representam 91% dos anúncios analisados– e aquela produzida por órgãos estatais. Embora não chegue próximo a ser igualitária, com 28% de negros, a propaganda governamental tem muito mais personagens não brancos do que a privada, que traz só 10% de negros e 6% de outras etnias.
“A publicidade estatal sofre mais pressões para ser diversa, inclusive em questão internacional, de fazer uma representação do Brasil”, afirma Campos. “O país sempre se colocou perante a comunidade internacional como muito diverso, mas isso não se verificava na representação dele. Então o estado se tornou mais sensível para adequar sua imagem ao discurso.”
No caso de vendas de produtos, a população negra é preterida em todas as categorias. Mulheres brancas são maioria nos anúncios de joias (82%), roupas (51%), cosméticos (64%) e acessórios (46%).
Já os homens brancos protagonizam propagandas de carros (56%), bebidas (51%), medicamentos (49%) e instituições de educação (54%).
Mas por que, embora seja um grande mercado de consumidores de produtos, os negros não se veem nas propagandas que são veiculadas?
Segundo a presidente do Gestão Kairós, Liliane Rocha, grupo que faz consultoria em diversidade para empresas como Coca-Cola e Cielo, há uma questão do tipo “ovo ou galinha”. A difusão de propagandas com brancos acaba alimentando uma visão estruturalmente racista, que, assim, dificulta uma mudança nesse quadro.
“Há um viés inconsciente, o que se chama de ‘blind spot’, que todos nós temos por causa de uma estrutura machista e racista”, diz ela. Em razão disso, há uma percepção introjetada de que determinados papéis caberiam a figuras brancas, o que se reflete numa maior aparição delas nos espaços privilegiados. “Fica uma questão do tipo ovo ou galinha.”
Outro ponto apontado por Rocha como determinante é a falta de profissionais negros em posições de tomada de decisão nas agências. Nesse ponto, ela converge com a procuradora Valdirene de Assis, coordenadora do Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidade do Ministério Público do Trabalho.
Assis é responsável, desde 2019, por um trabalho com as 16 maiores agências de publicidade do país para ampliar a contratação de jovens negros na área, que pretende levar a 30% o número de profissionais que não sejam brancos.
“Os profissionais negros tem mais dificuldade de inclusão nesses espaços de destaque, de privilégio dessas carreiras mais concorridas”, diz. “Essas contratações que tentamos aumentar são dos universitários, nos postos estratégicos do organograma das empresas, não nas categorias de base”, afirma a procuradora.
Dudu Godoy, presidente do Sindicato das Agências de Propaganda de São Paulo (Sinapro-SP), diz que a mudança do quadro deve ocorrer de médio a longo prazo, para que haja mudança na diversidade dos quadros empresariais.
Quando lhe foi perguntado se a falta de representatividade de uma categoria majoritária da população não tem impacto nas próprias vendas e na construção de mercado, Godoy respondeu que “infelizmente a publicidade, por uma série de razões, representa a elite”.
“Produzimos e pensamos o que as pessoas vão comprar no shopping JK Iguatemi”, diz.
“A favela, por exemplo, tem um poder aquisitivo enorme. As favelas do Rio consomem mais do que boa parte do interior de São Paulo junto, mas dá para contar nos dedos as marcas que estão anunciando para essas pessoas.”
Folhapress