Nesta sexta-feira (11), completa-se um ano desde que o Brasil foi oficialmente atingido por uma das maiores epidemias de sua história: o vírus Zika. Os pesquisadores correm atrás do desconhecido, entretanto, a epidemia coloca em evidência uma realidade bem conhecida de desigualdade e discriminação. “Por trás da epidemia, há mais que um mosquito e um vírus. Tem um sujeito oculto que precisa ser lembrado, ser trazido para o centro da narrativa: a mulher jovem negra em idade fértil”, afirma a médica Jurema Werneck, integrante da ONG Criola. A declaração revela a preocupação diante da epidemia em torno da situação da mulher, em especial a negra. Especialistas são unânimes em afirmar que a epidemia do vírus zika revela uma série de violações de direitos, a começar pela invisibilidade.
Os números oficiais divulgados pelas secretarias municipais e estaduais de saúde referem-se somente aos bebês que nasceram com alteração neurológica. Quase um ano depois da explosão da epidemia, não se sabe ainda quantas mães foram de fato infectadas pelo Zika ou outra virose transmitida pelo mosquito. Até agora, com exceção de ações isoladas de alguns órgãos de assistência social, as pesquisas feitas com as mulheres tem focado nos sintomas e no diagnóstico. O perfil racial e socioeconômico das pacientes fica relegado.
“O Estatuto da Igualdade Racial, aprovado em 2011, diz que a informação desagregada por cor na saúde é uma obrigação. Outras portarias do Ministério da Saúde e do SUS também já determinam isso. No entanto, quando o ministério da Saúde criou a ficha de notificação obrigatória para zika não inseriu o dado raça/cor”, critica Jurema Werneck.
O Ministério da Saúde informou que ainda não tem informações sobre o perfil socioeconômico e racial das mulheres afetadas pela epidemia. Segundo a pasta, os dados enviados inicialmente pelos estados não tinham informações desagregadas. De acordo com a assessoria, a área técnica do ministério deve terminar até dezembro deste ano um material que deve conter o perfil das vítimas da epidemia.
Mesmo sem dados oficiais, esse perfil é facilmente percebido quando se observa mais atentamente as ante-salas de consutltórios e corrdores de hospitais. A maioria delas é usuária dos serviços do Sistema Único de Saúde, mora na periferia de grandes cidades, é negra e jovem.
Em Pernambuco, estado mais afetado pela epidemia, dados da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social corroboram a impressão inicial. Até julho de 2016, dos 369 casos confirmados de bebês com microcefalia no estado, 176 são filhos de famílias vinculadas ao Cadastro Único de benefícios sociais do estado. Ou seja, 48% deles são filhos de famílias que ganham até R$ 85 por mês e recebem o Bolsa Família. O cadastro mostra ainda que 71% das mães dessas crianças são jovens de 13 a 29 anos, 78,8% são negras e mais de 93,8% estariam aptas a receber o Benefício de Prestação Continuada, BPC, benefício assistencial concedido pelo INSS a idosos ou pessoas portadoras de alguma deficiência e que ganham menos de um quarto do salário-mínimo por mês, o que equivalente a R$ 220.
Estatuto
O Estatuto da Igualdade Racial baseia-se na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída em 2009 e que orienta os órgãos de saúde a incluir “o quesito cor em todos os instrumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos”. A recomendação também consta na Política Nacional de Atenção à Saúde da Mulher, lançada em 2004. De acordo com esta política, indicadores de saúde que consideram cor ou raça/etnia são absolutamente necessários para avaliar a qualidade de vida de grupos populacionais e planejar e executar ações.
A representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, reforça a importância da efetivação dessas políticas para enfrentar o racismo e sexismo institucional nos serviços de saúde do país. “Nós temos que reconhecer que a epidemia está atingindo a população mais pobre e um grande número de mulheres negras. O Brasil tem políticas públicas de saúde, de igualdade racial e das mulheres. Este é o momento para que essas políticas sejam realidade para saber como atingir essas populações e garantir que desde as pesquisas até os tratamentos, a reabilitação, os serviços sejam pensados e desenvolvidos com uma perspectiva de gênero e raça”, defende.
Apoio financeiro
Segundo o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), de novembro de 2015 a setembro de 2016, foram concedidos 1.343 Benefícios de Prestação Continuada por microcefalia. O INSS não sabe quantos desses casos são relacionados ao vírus Zika. Entretanto, comparando o número com o período de novembro de 2014 a setembro de 2015, quando não havia o surto, foram concedidos 182 benefícios por microcefalia, número sete vezes menor.
Muitas mulheres ainda estão esperando a liberação do benefício, como Ana Carla Bernardo, 23 anos, moradora de São Lourenço da Mata, região metropolitana do Recife (PE). Sua filha, Elizabeth, nasceu com a Síndrome Congênita do Zika, em 15 de novembro de 2015, poucos dias depois que o Ministério da Saúde decretou emergência. Ana Carla teve o pedido do BPC negado pelo INSS e recorreu à Defensoria Pública da União (DPU).
O Defensor Público da União no Recife, André Carneiro Leão, explica que este é um problema que a defensoria tem enfrentado no estado e desde o início do surto apenas 35 pessoas tiveram o BPC deferido pelo INSS. “A gente tem um grande contingente de pessoas que não tiveram seu benefício deferido, ainda que segundo os dados da secretaria de assistência social, a maior parte dessas mulheres esteja no perfil de pessoas que poderiam receber o chamado BPC”, comenta o defensor.
Separada do pai da menina, Ana Carla teve que voltar para a casa de sua mãe, que é idosa e tem problemas graves de saúde. A rotina desgastante de levar a menina diariamente para consultas, exames e terapias fez Ana Carla deixar o trabalho. “Na verdade, eu estou vivendo de doação. Eu trabalhava para mim mesma, sou cabeleireira. Parei porque não tenho mais condição, não tem quem fique com ela. A minha mãe me ajuda, o pai dela também, mas não é suficiente”, desabafa.
Ana Carla, sua filha e sua mãe vivem com um salário mínimo, insuficiente para todas as despesas. “A gente tá querendo justiça, porque está difícil: é medicamento, passagem de ônibus. A gente quer mesmo que eles tomem uma providência, que liberem esse benefício, que não é nenhuma fortuna. Não dá nem para manter direito a criança porque só de passagem a gente gasta R$ 300, fora medicamento e as outras coisas que ela precisa. Então, é pouco, mas vai ajudar bastante”, diz.
Na defensoria pública da União, além do BPC, as mães têm apresentando diferentes demandas como o direito à saúde, acesso aos exames e prioridade no financiamento da moradia. Alguns benefícios foram conquistados, entre eles a ampliação da licença maternidade para seis meses e a prioridade no cadastro do Programa Minha Casa, Minha Vida.
Atendimento insuficiente
Em Pernambuco, algumas cidades do interior inauguraram centros de reabilitação para evitar o deslocamento diário das mulheres até as grandes cidades. E essa deve ser uma tendência nos outros estados mais afetados pela epidemia. A fisioterapia dos bebês é uma das demandas mais buscadas pelas mulheres, mas os hospitais e centros de reabilitação que oferecem o serviço não têm vagas, espaço e profissionais suficientes. No Hospital Dom Pedro I, em Campina Grande (PB), onde 122 crianças e suas mães são atendidas, profissionais de saúde tentam levantar recursos por meio de doações entre os pacientes e outros colaboradores para construir um novo centro de reabilitação.
À medida em que as crianças vão crescendo, novas necessidades vão surgindo. A professora da faculdade de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, Tânia Lago, sugere que sejam criados outros espaços de cuidados para os bebês e suas mães. “Imagine que as mulheres não vão poder viver 24 horas por dia cuidando de seus filhos. Elas precisarão de algum respiro. Será que o Brasil não devia pensar em ter centros de cuidado diário, por exemplo, onde a mãe pode, em alguns dias da semana que ela precisar, deixar a criança, fazer as coisas que ela precisa fazer da vida dela e recolher a criança no final do dia?”, diz.
O diretor de vigilância epidemiológica do município de João Pessoa (PB), Daniel Araújo, analisa que a pressão inicial foi sobre os serviços de saúde, mas nos próximos meses, o sistema de educação é que terá que se adaptar. “O que a gente também observa é que algumas crianças apresentam a condição da microcefalia e outras, além dessa condição, apresentam má formação de membros superiores e inferiores. É outra situação que o serviço de reabilitação vai ter que se reorganizar. Entre agosto e outubro, um número de crianças com microcefalia no Brasil inteiro completa um ano. Mais um pouco eles entram idade escolar. Aí é outra situação que a rede de escolas públicas, e até privadas, vão ter que se adaptar nesse novo cenário. E aí eu acho que os professores, diretores de escola, equipe de secretarias de educação vão ter que ver esse outro problema: como é que a rede pública de educação vai receber esse número de crianças?”, questiona Daniel.
Agência Brasil