“O Cachorro de Odisseu“ por João Gilberto Guimarães

1

Argos esperou. Esperou por vinte anos, largado na poeira, esquecido no quintal da memória de Ítaca. Era jovem quando Odisseu partiu para a guerra: ágil, destemido, dono de patas rápidas e de um faro impecável. O tempo, porém, foi cobrando pedágio. Primeiro a força, depois os reflexos, por fim o corpo inteiro. Restou-lhe apenas a esperança de rever o dono. Quando finalmente o viu, já não tinha vigor para saltar, nem voz para latir. Moveu a cauda, baixou as orelhas, reconheceu o amigo e morreu.

Esse trecho alude à Odisseia, um dos maiores poemas da humanidade. A autoria é atribuída a Homero, o poeta grego que também teria escrito a Ilíada. Mais do que simples histórias de batalhas e viagens, esses textos ajudaram a moldar a cultura ocidental, oferecendo imagens e símbolos que atravessaram séculos. A Odisseia não é apenas o relato da volta de Odisseu para casa, mas também uma reflexão sobre a espera, a perseverança e o tempo. É um espelho da condição humana.

No coração desse épico grandioso, Argos, o cachorro de Odisseu aparece como um detalhe quase esquecido. Mas sua imagem é inesquecível porque traz uma verdade universal: a espera pode consumir a vida. Argos, que nasceu cheio de vigor, não viveu aventuras nem caçadas depois da partida de Odisseu. Viveu à margem, no silêncio, na paciência de quem acredita que algo vai acontecer. E morreu justamente no instante em que sua espera encontrou sentido.

Quantas vezes nós não fazemos o mesmo? Quantas vezes adiamos nossos sonhos, convencidos de que um dia a ocasião perfeita virá? Quantas vezes deixamos que a vida escorra pelos dedos enquanto nos acomodamos em promessas, medos e desculpas? Ficamos à beira da existência, como cães fatigados, olhando para o horizonte em vez de caminhar em sua direção.

O problema é que o tempo não espera ninguém. A juventude se desfaz, a energia se esgota, e o que poderia ser vivido se transforma em memória do que nunca aconteceu. É por isso que tanta gente encontra a felicidade apenas na véspera do fim, quando já não há mais corpo para realizá-la.

A história de Argos nos alerta. Não basta esperar. É preciso levantar, buscar, arriscar. A vida não nos garante um reencontro tardio como o de Odisseu e seu cão. A vida pede urgência, desejo e força.

Que não sejamos como Argos, resignados na poeira do tempo. Que possamos ser como Odisseu, bravo andarilho das marés navegando por entre mares incertos e bravos, errando rotas, enfrentando tempestades, mas sempre em movimento. Pois viver não é esperar, é partir. E cada manhã pode ser Ítaca, se tivermos coragem de zarpar. Navegar é preciso.

Por João Gilberto Guimarães Sobrinho, é escritor, poeta, cientista social e produtor cultural.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Comentar
Seu nome