Lego colonial – Por Álamo Pimentel

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O escândalo político que resultou na saída de Geddel Vieira Lima da Secretaria de Governo da Presidência da República expõe marcas e ecos do colonialismo interno do Brasil. Entre os idos de 1500 e a história mais recente do país, personalidades públicas expressam em seus comportamentos: traços, gestos, feitos e vozes que remetem ao passado colonial do Brasil com rebocos contemporâneos. Geddel e a sua torre na Ladeira da Barra servem-nos de exemplo.

Conexões entre personalidades ilustres da formação colonial da Bahia e o ministro caído podem nos proporcionar leituras atualizadas do colonialismo contemporâneo presente na derrocada de Geddel. Isto pode ser feito à maneira de montagem de um lego. Brinquedo dinamarquês criado na década de trinta do século passado portador de inspiradora denominação.

Há duas versões para a tradução da palavra lego. A primeira delas remete ao próprio dinamarquês. Segundo esta versão, a palavra resulta de uma contração da frase leg godt “brincar bem”, em português. A outra definição remete ao latim. Neste caso, lego pode significar “eu leio” ou então “eu reúno”. O lego colonial proposto no título deste ensaio comporta generosamente os sentidos de ‘ler’, ‘reunir’ e ‘brincar’ como atitudes por meio das quais compreendemos no presente as atualizações do passado. Importante destacar que o ‘brincar’ não remete à falta de seriedade, ao contrário inscreve a ludicidade na produção envolvente de formas de fazer o pensamento e a linguagem. Dentro do confuso cenário de disputas, traições e desordem do atual governo, raciocínios lúdicos favorecem a produção de análises capazes de extrapolar conclusões mais imediatas dos dramas que dia após dia, semana após semana, ilustram as páginas da vida brasileira nesta segunda década do terceiro milênio.

Geddel Vieira Lima caiu por sua ambição desmedida no acúmulo de prestígio político e social. Foi denunciado pelo seu colega, hoje ex-ministro da cultura, Marcelo Calero, na utilização de meios pouco louváveis para viabilizar a construção do prédio La Vue na região mais valorizada da capital baiana. O prédio resultaria em uma torre com aproximadamente 30 andares ao sopé da Ladeira da Barra, local em que teve início o processo de colonização da Bahia e do Brasil. A denúncia trouxe a público, vários traços de comportamento do então ministro baiano: truculência, imposição de interesses pessoais, ímpeto de interdição de processos públicos por meio de ações particulares e, o que parece ser mais grave, a utilização do governo como balcão para o tratamento de negócios de família. Geddel não foi o primeiro e, certamente, não será o último político a agir desta maneira na história do Brasil. Tornou-se vulnerável pelo prestígio que amealhou ao se tornar um dos homens fortes do atual presidente, ao longo de todo o processo que gerou o golpe e liquidou com a democracia brasileira neste ano de 2016.

Há alguns personagens presentes na história da formação colonial da Bahia que nos fazem lembrar o ministro caído. Francisco Pereira Coutinho, primeiro donatário da Capitania, recebeu como prêmio da Coroa Portuguesa por suas façanhas militares na Índia, um vasto pedaço de terras para administrar com a sua família invasão dos portugueses na Bahia. Instalou a sua fortaleza na região que hoje compreende o bairro da Barra, nos arredores do empreendimento La Vue (que derrubou Geddel). Francisco Pereira Coutinho entrou para a história sob a alcunha de Rusticão. Era truculento, incapaz de negociar com os índios e de dividir o poder com agentes coloniais que o assistiam, sobretudo Diogo Álvares. Antes de concluir o seu domínio familiar teve que fugir da Vila Velha instalada nas proximidades do Farol da Barra. Passou uma temporada na região de Porto Seguro e, quando retornou para reassumir o seu poderio, o barco naufragou nas proximidades da Ilha de Itaparica e ele foi devorado com a sua tripulação doméstica pelos Tupinambá.

Garcia d’Ávila Pereira de Aragão, outro famoso personagem da história colonial da Bahia, nasceu em outubro de 1735. Herdeiro do patriarca Garcia D’Ávila que chegara à Bahia a serviço de Tomé de Souza, primeiro governador geral, tornou-se o mais poderoso membro do seu clã no século XVIII. Acumulara o prestígio da família no comando da Casa da Torre, símbolo maior da dominação territorial, cultural, social, política e econômica do Brasil Colonial. Não teve filhos, embora tenha se casado por duas vezes com mulheres de famílias tradicionais. Tornou-se famoso pela sua riqueza e sua crueldade. Era implacável na punição daqueles que o desobedeciam, sobretudo os seus escravos. Após a sua morte, parte do seu patrimônio foi transferida para a Igreja Católica.

O velho Francisco Pereira Coutinho assim como o último Garcia D’Ávila reaparecem nas atitudes que colocam Geddel Vieira Lima na berlinda da história recente. Não obstante a satisfação pessoal de estar ao lado de que manda, usufruíram do poder para erguerem torres para os seus clãs. A torre de Geddel, batizada com uma expressão francesa, renova o apreço por outra Europa, que não a portuguesa. A truculência, somada à ambição desmedida pelos bens materiais e pela incapacidade de mediação política que não seja pautada pelas miudezas do interesses pessoais; conduziram ao fracasso os personagens que conferem uma ‘ancestralidade colonizadora’ aos antepassados de Geddel e ao próprio ministro caído. Todos foram traídos por si mesmos e, de certa forma, caíram no esquecimento da população brasileira.

A queda de Geddel reapresenta a assunção das torres coloniais que se erguem no Brasil e mundo afora em plena contemporaneidade. Vale lembra que o recém eleito presidente estadunidense habita a Trump Tower na famosa Quinta Avenida de Manhattan (Nova Iorque). Donald Trump compõe suas agendas políticas com aliados em seu ambiente doméstico. Habita uma torre visível em todo o planeta. As torres elevam as vistas dos donos do poder ao mesmo tempo em que ampliam as distâncias nas quais se isolam para subalternizar os seus diferentes.

No caso do ex-ministro baiano a elevada morada que ainda não saiu do chão também é parte de um negócio doméstico. Um empreendimento com fachada moderna que serviria de condomínio para o exercício de práticas sociais eivadas de conceitos e afecções coloniais. Pedra sobre pedra, caso fosse erguido, poderia servir de monumento ao colonialismo interno que domina a Bahia e o Brasil. Geddel caiu antes que a torre se levantasse. Talvez este seja último o detalhe trágico de todo o episódio.

O que este lego colonial nos mostra é que matéria e subjetividade constituem partes indissociáveis dos jogos de poder que atualizam no presente práticas sociais muito antigas. Não estamos distantes do nosso passado colonial ao tempo em que purgamos a nossa ignorância pelo futuro mais próximo. Ler, reunir e brincar com as referências que já atestam nossos caminhos na história vivida até aqui, talvez nos ajude a criar alternativas para fazer sentir, fazer dizer, fazer ver e fazer saber a tragédia em que estamos metidos e as possibilidades de mudar o curso da nossa história mais recente.

 

 

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