Sempre Aos Domingos: “Meu São João jamais foi o mesmo, Seu Manoel!”, por Sibelle Fonseca

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Essas festas de junho são a cara de meu pai. Poderia se chamar Pedro ele. Nasceu na véspera do dia do santo. Rodelense de raiz, tinha o Nosso Senhor São João no sangue, amava forró, fogueira, e soltava fogos, coisa que nunca deixou nos faltar, e nem aos netos. Todo junho, ele fazia um pacotinho com a cota de fogos de cada um e distribuía entre as suas crianças.

Vejo meu Manoel dançando, desengonçado, “Nem se despediu de mim” e choro quando ouço “Brincadeira na Fogueira”: “Tem tanta fogueira, tem tanto balão. Tem tanta brincadeira, todo mundo no terreiro faz adivinhação. Meu são João, eu não. Eu não tenho alegria. Só porque não vem quem tanto eu queria”.

Meu Manoelito, um arraial de ensinamentos.

Ele era um homem bom. Machista, rígido, severo, valente e de um coração enorme. Tinha um coração de mãe, meu pai. Vivia nas bordas. Não sabia ser coluna do meio. Ou era oito, ou oitenta. Preto ou branco. Preto No Branco. Cinza jamais. Não tinha muita paciência, mas era capaz de passar horas brincando com uma criança e lia ,diariamente, as notícias do jornal. Precipitado, sem pavio. Aventureiro até quando pôde. Não tinha papas na língua e não ficava nunca sem se posicionar, mesmo que aquilo lhe gerasse algum aborrecimento. Dizia o que pensava e fazia o que dizia. Se isso lhe rendesse algum prejuízo, ele assumia. Tinha um senso de justiça sem tamanho. Incomodava com suas verdades e me dizia sempre: “desagrade com a verdade e não agrade com a mentira, minha filha.”

Meu pai era um homem honesto. Me obrigou a ajoelhar, pedindo desculpas, aos pés do gerente do supermercado Pinguim, em público, por um furto que pratiquei. Aos 7 anos, furtei um bombom e isso me rendeu um ensinamento que trago até hoje. Não sou capaz de levar nem uma Bic de ninguém, nem nunca quis levar vantagem em nada.

Meu pai era humilde, mas se precisasse era o mais arrogante dos homens. Ah, se era! Ele me dizia “Seu nariz deve tá no centro, minha filha. Nem acima, nem abaixo do de seu ninguém. Mas se te olharem de cima, olhe mais alto ainda. Para os humildes se encurve. E segure o olho no olho.”

Falava também de apertar a mão com firmeza, porque mãos frouxas são perigosas. E não via com bons olhos esse negócio de dois beijinhos em todo mundo.

Era um sábio que só fez até o curso de Admissão. Ele assinava o nome, sabia ler e dominava as quatro operações. Tropeçava no português, não sabia nada de antropologia, mas era um filósofo dos bons. Um contador de histórias. Repetidas histórias de personagens desconhecidos que, de tanto ele falar, se tornavam meus íntimos. Jamais esquecerei da garça e do socó da estória que eu chorava toda vez que ele contava. Meu pai era emoção pura. Lúdico, um moleque brincalhão, que já idoso, fugia para tomar banho no Velho Chico.

Meu pai amava música. Na sua caixinha de fitas cassete, guardava suas dores, seus amores. Me pedia pra cantar “Beijinho doce” e sabia como ninguém abraçar apertado e suspirar dobrado. Adorava uma farra, regada a cerveja, som, família e amigos. Logo ficava com o olho miúdo e “conversadeiro”. O mestre da indaga, que dançava sorrindo como um menino.

Amava frutas, pirão de bode, pintado, uma caninha antes do almoço, casa cheia, circo e parque de diversão. Por não ter paciência odiava cinema, mas me levou pra ver “Marcelino Pão e Vinho”, minha primeira vez de cara com uma telona.

Um subversivo de direita. Uma vítima deste sistema perverso. Desertor do Exército brasileiro e fã de Getúlio Vargas. Um cara que nem sabia que tava mais “pras esquerda”, porque ele gostava mesmo era de gente e quanto mais injustiçada, mais ele se apegava a causa. Mas também me dava “peia” porque eu lia Marx e vendia escondido o periódico comunista “Tribuna Operária” no colégio das freiras.

Não foram poucos os nossos embates. Eu o afrontei e o enfrentei. Ele resistia, eu também.  Mas, após morder, assoprava. Dava 12 bolos de escova de lustrar sapato em cada uma das mãos, umas cinturadas seguras, e logo se arrependia, prometendo os céus. Meu pai metia medo e era divertido. Passeava entre o rigor e a leveza, numa maestria, que Ave Maria! Batia e afagava. Era intenso meu pai. Chegado a um drama.

Cheio de defeitos. Abarrotado de virtudes. A maior delas, era a capacidade de pedir perdão e aceitar perdão. A alegria de viver também era seu traço marcante. A teimosia, então…

Ligeirinho, apressadinho, adorava uma buzina, uma piada, uma pirraça, uma provocação e um telefone.

Era um homem difícil. Nunca foi fácil lidar com seu gênio. Não vou transformá-lo em santo agora. Mas quem disse que os pais são perfeitos?

Ficamos sem nos falar por um curto e necessário tempo de amadurecimento. Nada significante diante do tempo que nos amamos e aprendemos juntos a viver. Ele era carinhoso demais. Afetuoso demais. Protetor demais. Ele só sabia ser demais em tudo. Meu pai era superlativo, ativo, afetivo, afetado, terno, fraterno. Uma confusão!

Andam dizendo que eu sou igualzinha a ele, quando tentam me definir. E eu fico toda cheia de orgulho, podem crer.

Carrego a grande maioria dos seus conselhos e ensinamentos, mas joguei fora o que não fazia nenhum sentido. Tento ser o que meu pai queria ser e sou o que ele jamais quis que eu fosse. Ele me dizia: “Minha filha, gente como você sofre mais. É mais difícil”. Hoje até acho que ele dizia isso como quem dissesse pra si mesmo. Não deu pra eu ser diferente do que sou, meu pai! Nem o senhor conseguiu esse feito.

Nos seus últimos tempos, enfrentando brava e dignamente um câncer, meu pai me chamou pra um pedido de perdão. “Desculpe seu pai pelos exageros, minha filha. Você desculpa? ”

Respondi com a mesma pergunta: “Desculpe sua filha pelos exageros, meu pai. O senhor desculpa?”

Daí me joguei no seu leito para o abraço mais seguro e verdadeiro que já senti. Entendemos que fomos o melhor que pudemos, até quando erramos.

Reconhecemos nossos exageros e já com sua finitude ao lado, vimos a bobagem que é perder tempo com convenções e intolerâncias. Nos perdoamos entendendo que a vida é assim mesmo e isso é tudo muito natural.

Ele foi embora há uns anos e se transformou na ausência mais presente na minha vida. Ele vive em meus gestos, nos meus modos, no que falo e digo para os meus filhos. Ele vive no que vejo no espelho. Meu nariz feio é igualzinho ao dele. Meu olho brilha pela vida que nem o brilho que eu via nos olhos dele.

Sim, senhor, meu pai, na cabeceira da minha mesa é o senhor que senta, com todos os seus valores e princípios.

Meu São João jamais foi o mesmo, Seu Manoel! Só porque não tem quem tanto eu queria.

Mas vamos pular a fogueira de São Pedro, porque é imperativo viver, meu herói cheio de defeitos e adoravelmente virtuoso.

Sibelle Fonseca é radialista, militante do jornalismo, pedagoga, feminista, mãe de nove filhos, sendo 5 de 4 patas, cantora nas horas mais prazerosas, defensora dos direitos humanos e animais, uma amante da vida e de gente.

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