“A Província do São Francisco e o Sanfranciscano“ por João Gilberto Guimarães

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Pouca gente sabe — ou lembra — que já tentaram criar um estado chamado São Francisco. Isso mesmo: um estado brasileiro com esse nome forte e simbólico, centrado na região que hoje conhecemos por Juazeiro, Petrolina e outras cidades banhadas pelo Velho Chico.

A história começa lá atrás, em 1850, quando João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, propôs a criação de um novo estado brasileiro. A ideia era clara: tirar a região do esquecimento, da miséria e da negligência da política imperial. Na época, a região já havia sido deslocada de Pernambuco após a Confederação do Equador, (pense numa confusão) passando por Minas Gerais e, depois, sendo finalmente anexada à Bahia. O sentimento era de abandono. E como resposta, nascia o desejo de autonomia — e de reconhecimento.

Várias das cidades ribeirinhas desejam o título de capital deste novo estado, Juazeiro entre elas, mas projeto queria tornar a vila de Urubu (hoje Paratinga) a capital do novo estado, que se chamaria União. E fazia sentido, o rio São Francisco, com toda sua força e extensão, sempre teve esse papel unificador. O Velho Chico costurou culturas, histórias e economias ao longo de suas margens. E ainda que o projeto não tenha avançado, o espírito dele parece ter sobrevivido — pelo menos no coração e na vivência de quem vive por aqui.

É nesse contexto que nasce a nossa inquietação, o desejo de entender e identificar esse morador de dois lugares que chamarei de Sanfranciscano. Não como uma nacionalidade oficial, mas como um sentimento de pertencimento. O Sanfranciscano é aquele que mora em Juazeiro ou Petrolina (ou nos dois, como muita gente que dorme de um lado e trabalha no outro). É quem entende que as duas cidades não existem isoladas — elas se retroalimentam, se provocam, se ajudam, se espelham.

Juazeiro veio primeiro, é verdade. Petrolina nasceu da travessia, da oportunidade. Mas hoje, é impossível que uma mais viva sem a outra. E não é só questão de geografia ou economia — é cultura, é cotidiano. Um mora em Juazeiro, mas vai ao shopping ou ao médico em Petrolina. Outra mora em Petrolina, mas só corta o cabelo ou estuda do lado baiano. As festas, os amores, os sotaques, quase tudo se mistura.

E quem duvida da existência desse Sanfranciscano — desse ser que carrega as duas margens no mesmo corpo — pode fazer um teste simples: acorde cedo e vá até a ponte. Veja o fluxo de carros, de motos, de gente a pé, indo e vindo como se não houvesse fronteira. Observe as barquinhas cortando o rio em silêncio, levando estudantes, trabalhadores, comerciantes, turistas. Esse movimento diário é a prova viva de que aqui não se trata de duas cidades separadas.

Política à parte, Juazeiro e Petrolina se atravessam cada vez mais. E talvez, se aquele antigo projeto de Estado do São Francisco tivesse ido adiante, hoje a gente não teria tanta dificuldade em explicar essa identidade dupla — ou melhor, essa identidade única que é ser Sanfranciscano.

No fim das contas, pode até faltar o selo oficial de província ou de unidade federativa, mas o pertencimento já está dado. E o rio, sempre ele, continua correndo no meio, unindo em vez de dividir.

 


Por João Gilberto Guimarães
Sobrinho, juazeirense, produtor cultural, cientista social formado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco, entusiasta do resgate da memória histórica de Juazeiro e pesquisador das Políticas Públicas de Cultura.

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