“Um porto chamado Juazeiro no caminho de Clóvis Moura” por Ramon Raniere Braz

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cidades que são portos. Outras são margens férteis, onde as ideias florescem e criam raízes aéreas para que os ventos do mundo as conduzam a outros lugares. Juazeiro da Bahia é uma dessas Cidades. Não foi por acaso que Clóvis Moura, ainda jovem, aportou nos idos de 1940 à margem direita do Rio São Francisco. Foi em Juazeiro, segundo o historiador Gustavo Orsolon de Souza, que Moura começou a rascunhar aquele que se tornaria um dos mais importantes livros da historiografia brasileira: Rebeliões da Senzala.

Mas, não foi somente o serpentear do rio entre as veredas e barrancos da caatinga que ajudou Clóvis Moura a moldar sua percepção de Brasil. Há quem diga que o encontro do Autor com gente como o comunista Saul Rosas e os trabalhadores organizados na Associação dos Artífices Juazeirenses — sapateiros, marceneiros, alfaiates — que também lhe estimulou a refletir.

Importa frisar que a Sociedade Beneficente dos Artífices Juazeirenses, criada anos antes da chegada de Clóvis Moura a Juazeiro, já figurava como uma organização importante na vida social e política da Cidade. Fundada em 1928, era espaço de formação cultural e política. Ali nasceu O Trabalho, jornal que ousou, nos anos 1930, defender greves, denunciar a exploração e falar de socialismo no Sertão. Um feito contra-hegemônico, como revelam os estudos da Profa Dra Andréa Cristiana Santos em seu artigo “Vestígios sobre a imprensa operária e a organização dos trabalhadores em JuazeiroBA : processos de hegemonia e contra-hegemonia em dois períodos 1932-1964”.

Além da relação com o precursor do partido comunista em Juazeiro, Saul Rosas, sabe-se que aqui fundou em 1949 o jornal Jacuba com o objetivo de difundir as ideias do partido na Cidade.

Notadamente, pairava no ar da Juazeiro dos anos 1940 a névoa espessa de uma cidade estruturalmente marcada pelo racismo e pela desigualdade social — ainda que, à época, ostentasse o título de cidade mais pujante da região.  

Foi nesse ambiente que Clóvis Moura também se forja como intelectual negro, consciente de sua negritude e determinado a romper com a ideia de um negro submisso. Ao escrever Rebeliões da Senzala, apresenta o negro como sujeito histórico e agente político — um rompimento radical com o pensamento social brasileiro dominante à época.

É emblemático que estudiosos de Clóvis Moura identifiquem Juazeiro como um marco em sua trajetória intelectual — mas quantos juazeirenses de fato conhecem esse capítulo da história? Celebramos, com justiça, os artistas, músicos e esportistas que embelezam nosso imaginário coletivo, mas há uma assimetria perversa nessa memória seletiva. Enquanto figuras escolhida são mitificadas, a história das lutas populares que moldaram a cidade é relegada a um lugar menor, de quase esquecimento.

Evoco Clóvis Moura e sua curta passagem por Juazeiro para lembrar Saul Rosas, para rememorar os trabalhadores organizados na Associação dos Artífices. Mais que isso, para lembrar o lugar relegado à população negra e indígena na história de nossa Cidade. População que teve sua história engolida pelo imaginário de uma falsa democracia racial que Moura acertadamente combateu.

Em 2025, celebramos o centenário de nascimento de Clóvis Moura. Um marco que nos convida à releitura urgente de sua obra e de seus passos. Num país ainda atravessado pelo racismo estrutural e pelas desigualdades herdadas do escravismo, sua produção intelectual segue atual, provocadora e necessária e que ainda nos instrumentaliza a combater as tecnologias sofisticadas que retroalimentam as hierarquias raciais no Brasil e Juazeiro continua porto e margem  fértil, mesmo com suas inexoráveis contradições.

Referências

SOUZA, Gustavo Orsolon de. “Rebeliões da senzala”: diálogos, memória e legado de um intelectual brasileiro. 2013.

SANTOS, Andréa C. Vestígios sobre a imprensa e a organização dos trabalhadores em Juazeiro-BA: processos de hegemonia e contra-hegemonia em dois períodos (1932-1964). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 36., 2013, Manaus. Comunicação em tempo de redes sociais: afetos, emoções, subjetividades. Anais […]. São Paulo: Intercom, 2013.

OLIVEIRA, Fábio Nogueira de. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra. 2009. 173 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.

Por Ramon Raniere Braz

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