Em 21 de agosto de 1989, o Brasil perdia a irreverência de um artista único. Raul Seixas, ícone de uma geração, deixava a Terra para entrar definitivamente para a história. É difícil mensurar o impacto de suas canções no imaginário brasileiro, mas é fácil perceber a atualidade das ideias que ele propagava com sua voz inconfundível, carregada de sotaque baiano e de um deboche quase infantil, mas profundamente consciente.
Eu cursava a sétima série no Colégio Paulo VI quando o colega Marcos apareceu com os LPs do padrasto debaixo do braço. Naquela época, as letras das músicas, sim, as músicas tinham letra, vinham impressas nos encartes dos discos, e era ali que a gente mergulhava, lendo e relendo como se fossem mensagens cifradas vindas de um outro mundo. A gente foi à loucura com o marasmo provocador de Maluco Beleza, com a viagem mística de Gita, com o épico Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás e com a fábula absurda e genial de O Dia em que a Terra Parou. Eram músicas que mexiam com a nossa imaginação e, sem que percebêssemos, nos faziam pensar, pensar demais até.
Só anos mais tarde entendi a ironia, o sarcasmo e as mensagens codificadas que vinham junto dos acordes e do deboche na voz de Raul. Ele sabia provocar. Sabia rir do poder, zombar das verdades absolutas e cutucar o ouvinte para que ele acordasse para a vida. Suas músicas eram como bilhetes secretos que driblavam a censura e atravessavam o rádio, o toca-discos ou a vitrola de algum vizinho, carregando sementes de rebeldia que brotam até hoje.
Raul viveu pouco. Vítima do abuso de entorpecentes e do alcoolismo, não escapou da sina que parece perseguir os grandes astros. Não são poucos os exemplos: Elvis Presley, Janis Joplin, Jim Morrison, Cássia Eller… é como se o sucesso viesse acompanhado de uma maldição que subverte o sujeito, até que a capa do alter ego ou a máscara do personagem se tornem pesadas demais para carregar. Talvez seja o preço de viver intensamente, de transformar vida em arte sem deixar sobrar nada para o amanhã.
Recentemente, foi lançada nas plataformas de streaming a série Raul Seixas – Eu Sou, que reconstrói lindamente a história desse brasileiro que tapeou a censura e provocou a sociedade nos tempos da repressão absurda que alguns idiotas de hoje teimam em negar. Ver aquelas imagens e ouvir aquelas canções é como reencontrar um velho amigo, daqueles que falam coisas que você não quer ouvir, mas precisa. Raul foi a mosca na sopa, a metamorfose ambulante, o sonhador de uma sociedade alternativa, e acima de tudo, um homem que nunca quis chegar rápido demais ao seu destino, porque sabia que é no caminho que mora a verdadeira aventura.
Hoje, mais de três décadas depois, suas músicas ainda encontram ouvidos atentos e corações desajustados dispostos a acreditar que sonho que se sonha junto é realidade. E talvez seja por isso que Raulzito nunca tenha partido de verdade: ele segue aqui, escondido em algum verso, rindo baixinho, enquanto nos lembra que é chato, chato mesmo, chegar a um objetivo num instante.
*A imagem acima é da homenagem que fizemos a Raul Seixas na edição 13 da revista As Flores do Mal, em 2013.
Por João Gilberto Guimarães, Poeta, editor, produtor cultural e fã de Raul.



