“A epidemia de feminicídios e o silêncio constrangedor dos homens ‘bons’” por Ramon Raniere Braz

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No Brasil, as mulheres estão colocadas em uma categoria social a qual a Judith Butler designaria de vidas não choráveis, aquelas cuja morte não mobiliza luto nem indignação suficiente.

A naturalização dessa indiferença, especialmente entre nós, homens, diz mais sobre o país do que qualquer estatística, revela que há vidas cuja eliminação não provoca ruptura, apenas uma discreta reorganização do silêncio social.

E talvez o mais perturbador seja o fato de que a escalada de casos de feminicídio não advém de monstros excepcionais, mas da normalidade dos homens comuns. Dos homens que pagam contas, postam fotos no churrasco, atravessam a rua com suas filhas pela mão e que, mesmo assim, sustentam, alimentam e executam um modelo de masculinidade que autoriza a morte lenta, simbólica e por fim literal das mulheres.

Antes que algum homem se apresse em esquivar-se desse fato, adianto que todos os homens, inclusive os homens bons, têm contas com isso. Porque o feminicídio não é o ponto de partida, é a consequência final, a última etapa de uma cadeia que começa muito antes, nos lugares mais confortáveis da vida masculina.

Eu me incluo aqui e faço isso por honestidade. Como homem negro e heterossexual, cresci sabendo que meu corpo era visto como alvo e, ao mesmo tempo, fui educado dentro do mesmo repertório patriarcal que produz homens inofensivos em público e autoritários em privado. É uma contradição que poucos admitem. Podemos ser alvos do racismo e, simultaneamente, operadores do machismo. Um sistema não anula o outro; convivem muito bem.

A verdade desconfortável é que os homens raramente se perguntam o que fazem com o poder que herdaram. Preferem listar o que não fazem: “não bato”, “não grito”, “não mato”. A régua é tão baixa que qualquer gesto de decência parece virtude. Mas, se honestidade intelectual vale alguma coisa, precisamos admitir que a violência contra mulheres prospera graças também ao silêncio dos homens que se consideram bons. Homens que enxergam as estatísticas, balançam a cabeça com pesar, mas seguem administrando seu cotidiano como se não tivessem nada a ver com o assunto.

Eu escrevo este artigo para lembrar que têm. Todos temos.

Não existe neutralidade possível quando uma nação transforma as suas mulheres em alvos móveis. Ou você combate esse sistema, mesmo nas conversas privadas, nas piadas que não ri, nas atitudes que confronta, na educação dos filhos, ou você o alimenta. Diante de uma estrutura tão sólida, não se posicionar é aderir.

A epidemia de feminicidios se alastra, afinal, porque também a persistência de homens que, mesmo diante da catástrofe, conseguem dormir tranquilos.

Não basta, portanto, reconhecer o problema. É preciso mover-se. Nós, homens, precisamos decidir que papel queremos ocupar na história que está sendo escrita agora e levantar-se da confortável poltrona da omissão é o primeiro grande passo.

Por Ramon Raniere Braz

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