O silêncio na sala de estar-Por Álamo Pimentel

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alamo pimentel

O silêncio age como dispositivo que orienta nossos gestos e ações. Quanto menor for o grupo, maiores serão os efeitos do silêncio da produção de fronteiras sociais. Nas sociedades do presente revela-se como um operador de engrenagens que além de fortalecer limites para a autogestão de pequenos grupos sociais, produz transposições da vida pública para a vida privada.

Os debates que antes ocupavam as ruas e praças das cidades desaparecem vertiginosamente. Transferidas para a sala de estar (espaço da privacidade familiar por excelência) as dinâmicas da vida pública recebem trato íntimo, passam a ser controladas por um regime de regulação dos silêncios: fala-se o que é conveniente, procura-se assegurar a cordialidade entre interlocutores, coloca-se o valor das pessoas acima do valor das instituições e, por fim, reduzem-se escolhas públicas a uma questão de gosto pessoal. Neste processo, o silêncio assemelha-se a um gatilho para a eliminação de conflitos. Atira em duas frentes simultâneas, por um lado amplia margens de omissões para que as pessoas evitem entrar em discordâncias, por outro lado, alveja interesses públicos  com a tirania do gosto. No Brasil, como bem sabemos pelo dito popular, “gosto não se discute”.

A sala de estar ambienta a arena de intimidades em que temas como a sexualidade e a política estão à disposição de controles manipuláveis pelas regras familiares. Quando o casal resolve assistir a um filme de sexo na sala de estar, assegura-se de que as crianças não estejam por perto, escolhe o filme conforme suas fantasias. O casal não está interessado nos gemidos e sussuros do filme escolhido. Está faminto das cenas que alimentarão seus desejos e, ao mesmo tempo, temeroso com a exposição pública  da sua travessura conjugal. Mesmo na sala de estar do seu pequeno império familiar, o casal reduz o volume da tevê para que a vizinhança não participle da sua aventura. Tudo isto se torna possível com uso cuidadoso do controle remoto. É possivel avançar e retroagir no filme, repetir as cenas várias vezes e transformar a sala de estar numa oficina de práticas da intimidade. No silêncio, o exercício da sexualidade a dois (ou a sós) abre caminho para o inconfessável.

Ocorre algo parecido com a participação política. Os discursos sobre o que é a política são elaborados conforme as experiências pessoais de cada um, na maioria das vezes a partir de expectativas e frustrações muito particulares. Quando ocorrem divergências sobre o tema no ambiente familiar, as operações de silenciamento entram no circuito por meio daquele membro da família sempre disponível a atuar no campo do “deixa disso”, terreno generoso nas artimanhas da conciliação. Em tempos de eleição, não se fala sobre escolhas políticas, quando a revelação dos nomes dos escolhidos se torna inevitável, vem acompanhada da sentença: “eu voto nas pessoas e não nos partidos”.

Ocorre que a sexualidade e a política são produzidas socialmente. Ambas são multiformes e tornam indissociáveis a necessidade, o desejo e o protagonismo social expandido das pessoas (ou seja é importante que as barreiras que delimitam a vida pessoal da vida social sejam sempre ultrapassadas, para que a sexualidade e a política transpassem os tabus que as cerceiam). Quando uma e outra, lado a lado, transferem-se das arenas públicas para os domínios da vida privada, a sociedade como um todo, assiste, silenciosamente, ao esvaziamento de sentido dos lugares públicos para a ascensão dos modelos privados de gestão das necessidades, desejos e protagonismos sociais que, embora diferenciem as pessoas em suas escolhas, não conseguem garantir condições de igualdade para todas as pessoas no âmbito da vida pública. Daí o drama contemporâneo da falência das instituições públicas que nos impõe como única alternativa os modelos privados de gerenciamento das nossas vidas.

Enquanto a sala de estar permanecer como único refúgio para silenciarmos os debates sobre os conflitos da vida em sociedade, a tendência é o despovoamento dos lugares públicos. Isto promove intolerância crescente no trato com as condições de igualdade. Condições estas que tornam possíveis arranjos sociais com as diferenças que nos movem no mundo,  extrapolando as fronteiras que separam as poltronas da nossa sala de estar dos bancos das praças públicas.

1 COMENTÁRIO

  1. ÓTIMA REFLEXÃO SOBRE AS RELAÇÕES, OS EMBATES FAMILIARES E SOCIAIS, GOSTEI BASTANTE. PARABÉNS, ÁLAMO PIMENTEL. AGORA É ESPERAR, SIBELLE, QUE O EMBLEMÁTICO PROFESSOR E ESCRITOR, DE MÃO CHEIA, OTONIEL GONDIM. GOSTARIA QUE AMANHÃ PARA ABRIR O DIA NAS INDAGAS E DEBATES. SE AVEXE E AVEXE OTONIEL, SIBELLE. ABRAÇOS A TODOS DO PORTAL QUE TEM BOMBADO NA CIDADE E REGIÃO.

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