Biografias das lutas sociais produzem outras compreensões da democracia. Corpos que lutam carregam afetos, marcas e memórias de contemporâneos e ancestrais. Constituem-se corpos polifônicos. Expressam múltiplas vozes das experiências vividas em coletividade. Falam com (e não por) muitos outros corpos quando pronunciam suas sínteses de pertencimento à História.
Este foi um dos legados do dia 29 de Agosto de 2016, dia em que a presidente eleita democraticamente em 2014 proferiu o seu último discurso diante do Senado Federal e de toda a Nação. Dilma expôs a sua biografia e produziu ressonâncias nos milhares de corpos que, assim como o seu, atravessaram as fronteiras da morte na luta por mais vida para todos. Dilma assumiu as marcas da tortura a que foi submetida durante o período em que combateu o golpe militar. Destacou ainda a luta contra o câncer que enfrentou durante o seu primeiro mandato. Vida e morte produziram o entre-lugar do seu discurso. Escolheu o limiar da resistência para se posicionar como estadista que se lança para a História.
A indissociabilidade entre as dimensões físicas e sociais fazem da vida um fenômeno histórico. Para produzir mais vida contra o efeito mórbido das injustiças sociais, os corpos de quem luta são recíprocos na produção de sentidos para suas ações. Assim, o corpo de quem luta é atravessado por múltiplas vozes, éticas de pertencimento, sensibilidades políticas e estéticas da existência, daí a radicalidade de suas potências multivocais.
A ênfase do discurso foi a defesa da democracia e do Estado de Direito. Os erros e acertos cometidos nas tentativas de sustentação da governabilidade forneceram forma e conteúdo para a exposição da tragédia do momento vivido pelo Brasil. O drama exposto revelou o comprometimento de toda a Nação com as circunstâncias que resultaram no golpe. A presidente não tratou da sua deposição como governante. Fez-nos ver a derrota da democracia dentro das instituições que foram criadas para defendê-la.
O ritual de chegada de Dilma ao Senado Federal foi grifado pelas presenças do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e do poeta e escritor Chico Buarque de Holanda. Formavam uma composição simbólica de afirmação das lutas pela democracia. Juntos apresentavam a solidariedade como manifesto de suas biografias para ampliar horizontes no claustro da injustiça.
O corpo do ex presidente Lula não fala apenas das suas virtudes e vícios políticos. Fala também da sua condição de imigrante nordestino, de torneiro mecânico e das suas trajetórias como liderança sindical. O corpo de Chico Buarque de Holanda fez da poesia e da canção, caminhos do pensamento crítico brasileiro. Chico Buarque faz o Brasil se pensar através da sua poética. Um e outro, ao lado da Presidente Dilma, ofereceram a toda a Nação um arranjo de corpos que simboliza os mapas da produção das lutas sociais. O trabalho, a resistência combativa e a poesia sempre inscrevem vontade de futuro quando o presente é ameaçado pelo apagamento do passado e as utopias são ridicularizadas.
Não há vontade de futuro onde não há esperança. Não coragem para enfrentar a dureza dos dias quando as ameaças de retaliações interditam a beleza do diálogo. Não há democracia onde a vida, apartada das suas dimensões físicas e sociais, não é reconhecida como um fenômeno histórico. Onde não há democracia, a vida é um privilégio de quem manda e um padecimento de quem obedece.
Corpos que lutam nunca estão desamparados. Sobretudo quando a compreensão da história extrapola os ditames das leis humanas. Ainda tais leis que evoquem arbítrios divinos ou naturais estão sempre vulneráreis às conveniências políticas dos seus intépretes, humanos em demasia. O que produz coerência na multiplicidade de vozes que constituem um corpo polifônico é a radical sensibilidade de se fazer ouvir e ver através de outras experiências de lutas, outras experiências de vida.
O ato de defesa protagonizado pela Presidente Dilma Roussef foi um anúncio coletivo. Seguiu-se de convocação para as muitas lutas. Lutas que se inciam no fim de um dos mais importantes ciclos históricos da nossa democracia e na gênese de novos tempos para a reconstrução popular-participativa da política na defesa dos direitos sociais. Inscreve-se na biografia do momento a assinatura da única mulher eleita presidente da república que não renunciou, não se suicidou e que enfrentou como estadista a defesa do maior patrimônio brasileiro: a democracia viva.
Álamo Pimentel, juzeirense, poeta, ensaísta, especialista em Antropologia, doutor em Educação, pós doutor em Sociologia do Conhecimento, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.