O mercador de escândalos por Álamo Pimentel

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Antes da votação do processo de cassação do seu mandato, na noite do dia 12 de setembro na Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha reconheceu que estava ali pagando o preço por conduzir o ‘impeachment’ da presidenta Dilma Roussef. Eivou o seu discurso com vernáculo mercantil. Segundo seu raciocínio, pagou caro para ser rifado às vésperas das eleições municipais deste ano. E foi.

A fé, o dinheiro e o escândalo movimentam a economia e a política. Dominam o mercado de opiniões. A trajetória parlamentar do ex presidente da Câmara dos Deputados foi marcada pelo negócio da fé. Foi um dos mais notáveis membros da Frente Parlamentar Evangélica. Como presidente da Câmara dos Deputados foi o mercador dos interesses privados contra uma ampla agenda democrática a favor dos Direitos Sociais. Sua maior obra neste período: o ataque letal à democracia como autor do processo de cassação do mandato da presidenta eleita. Usou e abusou do cinismo para destituir 54 milhões de eleitores. Antes de sair de cena, fez as contas e reclamou o valor cobrado. Sentiu-se injustiçado por sua astúcia comercial. Após o resultado da votação, ameaçou lançar um livro com a sua versão sobre os acontecimentos. Agora vai se dedicar ao escândalo como negócio editorial.

Eduardo Cunha revelou-se homem exemplar do sistema. No mundo capitalista o negócio é ‘condição da política’, está escrito no Manifesto Comunista de 1848 de Marx e Engels: “o governo do Estado moderno é apenas um comitê para gerir negócios comuns a toda burguesia”. Durante o seu mandato como presidente da Câmara dos Deputados, Cunha inviabilizou as ações do Poder Executivo e transferiu para o Legislativo a administração dos interesses mais retrógrados que tentam dominar a nação. Protagonizou façanhas supreendentes mas tornou-se vulnerável no grande negócio destes tempos: o escândalo. Viu a sua imagem vender jornais, render audiências televisivas. Perdeu o controle da situação. Virou presa fácil do comércio editorial. Errou na contabilidade contra si mesmo.

Em tempos de excedência de opiniões e precariedade de conceitos, a forma mais lucrativa do mercantilismo contemporâneo justifica-se na tese de Benedict Anderson que aponta o ‘capitalismo editorial’ como sustento da vida nacional. A História é produto/produtora da cultura. Fora do parlamento, Eduardo Cunha oferecerá suas memórias ao mercado para inscrever-se na constelação de símbolos republicanos destes tempos. Cunha se diferencia daqueles com os quais compartilhou as ambiências do golpe pela democracia por sua criatividade venal. É autoral no uso da razão cínica e sabe se vender bem. Uma grife.

A data que selou a sua derrota na Câmara dos Deputados foi marcada por práticas de faxina moral. Durante o dia a Ministra Carmem Lúcia, em sua posse como ‘presidente’ do Supermo Tribunal Federal, apelou para a transformação do judiciário. Evocou a melhor literatura produzida no Brasil para ressaltar a ‘justiça’ como sentimento que habita o coração da boa e justa convivência cidadã. Os 450 deputados que votaram pela cassação de Eduardo Cunha seguiram, cada um a sua maneira, orientação de sentido semelhante, formavam uma maioria parlamentar favorável ao sentimento de justiça. O antigo sócio de muitas negociatas agora transformara-se em ‘símbolo’ da má política. Foi banido em nome da lei. A Revista Veja da semana destaca em sua capa mais uma manchete bomba: “O governo quer abafar a Lava-Jato”. Poucas páginas mais adiante, exibe auto-elogio editorial em defesa do seu “jornalismo de qualidade”. Primeiro o escândalo depois a técnica que o converte como um bem cultural da Nação: a informação ‘qualificada’. Judiciário, parlamento e mídia hegemônica trabalham duro para limpar suas imagens. Cunha se colocou lado a lado com aqueles que o enviaram para o cadafalso da vida pública. Passará a história a limpo com as suas próprias mãos.

A faxina moral que perpassa o momento da saída de Cunha implica a exaltação da técnica contra as vicissitudes da política. A combinação de neutralidade profissional, compromisso com a verdade e suposto engajamento cidadão presentes nos discursos recentes do judiciário, da mídia e do parlamento são utilizados para ‘passar a limpo’ a história do presente. Fala-se em nome das instituições para benefício próprio dos seus dirigentes. Cunha, isolado no púlpito do parlamento, falou por si. Mais uma lição para o mercado de opiniões que disputa saída editorial para a tese do golpe: no comércio das opiniões, os iguais se distinguem pela capacidade produzir com seus próprios argumentos, posições que os tornam desiguais no ato e no instante das suas falas. Faxinas morais sustentam-se com retóricas da salvação. Os autores salvam-se em nome dos outros.

Enquanto as instituições comprometidas com o duro momento histórico brasileiro tentam se safar, Eduardo Cunha muda de lugar. Passa de juiz a réu no circuito judicial-midiático-parlamentar. Está fora da lei.  Continua dentro do Mercado. Foi expulso da instituição que chefiou com a voracidade dos negogiantes. Agora governa-se. Escrever de próprio punho a versão mais recente do seu processo certamente não o transformará no Kafka brasileiro, mas indubitavelmente, increverá sua autobiografia na farsa trágica que faz do Brasil de hoje um país incerto em sua ‘condição nacional’. A promessa do autor que se apresenta neste momento como mercador de escândalos nos oferecerá nomes, endereços, eventos e enredos que nos permitirão imaginar com detalhes a comunidade política de que fazemos parte. O que está em jogo não é a existência de uma verdade única da farsa trágica, mas a pluralidade de versões que ela é capaz de produzir através dos seus protagonistas.

Álamo Pimentel, juzeirense, poeta, ensaísta, especialista em Antropologia, doutor em Educação, pós doutor em Sociologia do Conhecimento, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

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