Docência metonímica – Por Álamo Pimentel

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A imposição da reforma do Ensino Médio abriu um campo de disputas para a defesa de modos únicos de ensinar-aprender. A mídia impressa hegemônica tem se esforçado para afirmar discursos de exaltação de professores exemplares e pesquisas que enfatizam relações imediatas entre personalidades docentes e desempenho didático-pedagógico como pressuposto da melhoria do ensino.

Neste cenário, formam-se representações de uma totalidade docente em que o trabalho do ensino é mensurado pela competência pessoal do educador, que consegue conformar atitudes aprendentes segundo as formas dominantes de ensinar-aprender vigentes nos processos de escolarização. Docências metonímicas emergem deste movimento em que a conexão linear entre os desempenhos de professores e estudantes recorrem a uma visão meritocrática do ensino para justificar os investimentos na elevação da qualidade da aprendizagem.

A Revista Época de 31 de outubro de 2016 traz em sua capa a imagem de um professor fixado em um “quadro negro” repleto de fórmulas matemáticas. À primeira vista, somos conduzidos a uma ilusão ótica, temos a impressão de que as fórmulas matemáticas estampam a roupa do professor e expandem-se para a composição de fundo da imagem. O olhar mais detido revela o contrário, o quadro com as fórmulas devora do professor ou, paradoxalmente, devolve-o à cena pública como se nos interpelasse a uma visão do conhecimento fixado como condição de renascimento cognitivo.

Ultrapassada a visão inicial da imagem, duas manchetes e um pequeno texto ao lado da presença do professor em foco emolduram o discurso não verbal da capa da revista. A primeira manchete em letras garrafais diz o seguinte: “O mestre que muda vidas”. Em seguida, com letras menores, a outra manchete enfatiza: “O maior estudo já feito confirma que um bom professor é o fator decisivo para o sucesso ou o fracasso dos cidadãos. Muitos países já perceberam isso. O Brasil, ainda não”. O pequeno texto de apresentação do protagonista da cena revela: “O professor Luiz Felipe Lins, que leva alunos de escolas públicas à vitória em olimpíadas de matemática”. Os três pequenos fragmentos de texto associados à imagem-narrativa produzem, em linhas gerais, a visibilidade inicial de uma totalidade docente associada a certas particularidades dos processos de ensino.

O professor, o quadro e as fórmulas redesenham a velha centralidade do ensino diretivo que, ainda hoje, colonizam o imaginário pedagógico das sociedades ocidentalizadas. Os modelos de escolas produzidos pelo ocidente fixaram posições que diferenciam e antagonizam o lugar do professor, do estudante e do conhecimento válido nos espaços de uma sala de aula.

Ocorre que o professor eleito para servir de modelo à longa matéria da revista é diferente.  O breve texto que o apresenta ressalta a sua capacidade de conduzir estudantes de escolas públicas ao sucesso em olimpíadas de matemática. O mérito docente realçado pela revista, neste caso, induz os leitores e as leitoras ao convencimento de que um bom professor prepara seus estudantes para a superação de seus limites pessoais e para a competição cognitiva.

O tom da manchete principal define a centralidade do professor nos processos de ensino-aprendizagem como “Mestre que muda vidas”. Pastoral, por excelência, este discurso recorre ao tom religioso para comover leitores à política de valorização do exemplo do “bom mestre” como caminho único para a salvação do ensino. O exemplo pessoal eleva-se ao estatuto de totalidade exemplar.

Para completar a fundamentação da sua campanha em defesa do modelo ideal de educação a revista recorre ao discurso dos especialistas sobre o tema. Destaca um estudo realizado pela Universidade de Melbourne, na Austrália, para indicar as medidas dos graus de eficácia do trabalho docente no aprendizado dos estudantes. Ao longo das matérias que esmiúçam o convite da capa não faltam exemplos. Além do detalhamento da experiência do professor Luiz Felipe Lins em uma escola da periferia do Rio de Janeiro, o texto menciona exemplos que vão da Finlândia a Cingapura. Há ainda, uma entrevista com a pesquisadora Bernadete Gatti com a “espalhafatosa” manchete “nossas faculdades não sabem formar professores”. Os exemplos escolhidos não são ruins, são excludentes.

A estratégia editorial adotada pela jornalista Flávia Yuri Oshima, responsável pela assinatura das três matérias que servem de capa para a Revista Época, eleva um modelo de docência com pretensões de totalidade exemplar e exclui, em seus argumentos, outras qualidades que extrapolam o quadro geral de virtudes didático-pedagógicas celebradas na revista publicada semanalmente pela Editora Globo.

Duas das qualidades silenciadas pelas matérias são a formação do pensamento crítico e a pluralidade pedagógica. Ambas são previstas nos incisos II e III do artigo 206 da nossa constituição, que define os princípios do ensino em todo o território nacional. O inciso II destaca a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. O inciso III assegura “o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas”. Em tempos de imposições de reformas governamentais que pressupõem a propagação de teses tais como “escola sem partido”, “flexibilização do Ensino Médio” e “restrições de investimentos na educação pública”, a conveniência discursiva da Revista Época de 31 de outubro resume bem o papel da mídia neste momento de autoritarismo parlementar-judicial-midiático que vivemos: agenciar soluções viáveis para o pensamento único, dentro e fora das escolas.

Não custa lembrar que a revista foi publicada na semana em que mais de mil escolas públicas estavam ocupadas por estudantes secundaristas e universitários que contestam a PEC 241 (hoje PEC 55) que restringe os investimentos públicos em educação e saúde, a MP 246 que impõe a reforma do Ensino Médio e a PLS 193, Projeto de Lei que tramita no Senado e que impõe a Escola sem Partido como uma prerrogativa da obrigatoriedade da neutralidade no ensino. Este último Projeto de Lei confunde pensamento crítico com pensamento partidário e, o que é pior, afronta a liberdade de ensino e de aprendizagem duramente conquistadas na promulgação da Constituição Cidadã de 1988.

No momento em que estudantes secundaristas e universitários protagonizam lições de política no exercício da democracia participativa dentro das escolas e universidades públicas brasileiras, a Revista Época exalta modelos de docência única para justificar o desmanche das instituições públicas no Brasil sob o ímpeto do reformismo de ocasião.

A razão metonímica, conforme nos lembra o pensador português Boaventura de Sousa Santos, impõe a assunção de totalidades sob a forma de ordem. Ocorre que tais totalidades se utilizam de dicotomias tais como ocidente/oriente, sucesso/fracasso, melhor/pior, neutralidade/crítica, para excluírem de suas gramáticas os termos que confrontam suas teses centrais. A Revista Época nos oferece exemplos particulares com pretensões totalitárias. Entre o corpo do professor Luiz Felipe Lins, o “quadro negro” e as fórmulas matemáticas talvez seja possível ver a ascensão de docências metonímicas. Essas que silenciam a pluralidade do ensinar e do aprender a partir da exaltação de modelos didático-pedagógicos únicos, capazes de “mudar vidas”.

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