Estórias do fogo do povo do rio – Por João Gilberto Guimarães Sobrinho

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“Veja só, como toda estória redundante, essa estória começa com “era uma vez”, era uma vez uma ilha, no meio de um rio entre dois estados, uma ilha sustentando uma ponte que liga duas cidades, era uma vez uma lenda de uma serpente presa que antes de ser serpente era gente, era a gente, e a gente não se lembra de quem foi que amarrou ela, a gente só sabe que foi bem amarrada, com três fios dos divinos cabelos de nossa senhora, essa santa que é tão prestativa, que o povo conhece em tudo quanto é mundo desse mundo todo, aqui nós chama Das Grotas, porque ela foi nas grotas encontrada, sabe o senhor o mais curioso? É que quase todas lenda aqui tem a ver com o Chico, esse riozão todo que passa aí, é nego dágua, mãe dágua, minhocão e espirito que não tem carranca que baste pra espantar, é que o povo não vê, uns porquê não sabe vê, outros porquê não querem e outros porquê não podem porquê tão carregado demais com as coisas aqui desse lado do mundo. Mas o assunto do senhor é a ilha né? pois eu lhe digo o que disse o avô do meu avô para o meu avô e meu pai não quis saber mas eu aprendi, a tal serpente é poderosa mais que imagine, pois tem os olhos de fogo e lança fogo nas margem e afunda embarcação e come gente e é um terror que não tem mais quem aguente e o padre escreve carta pro papa que escreve pro presidente, e aí o intendente mandou chamar da capital um sujeito famoso, com diploma de entendido em mistério, e era um homem forte corajoso porque não teve marinheiro, barqueiro nem cabra valente que entrasse mais no rio onde o “zói de fogo” reinava, e ele foi só no paquete e era um colosso, a cobra na frente e ele atrás, o bicho parava ele encostava e desenhava e se perguntava como podia e voltou gritando que não sabia, que nunca tinha visto e mesmo vendo não acreditava, e era uma agonia no jornal porque mais ninguém navegava que quem se aventurava sumia, pois do nada surgiu uma providência, com a destruição do arraial de canudos e a morte do bom conselheiro o exercito ficou sem muita ocupação, e o próprio Prudente de Morais enviou um destacamento pra eliminar de uma vez por todas essa ameaça à republica ou nas palavras dele: “esmagar  permanentemente essa  aberração da natureza que ousava interferir no progresso e na natureza das coisas que acontecem no Brasil”, pois, eu contando o senhor não acredita, o tal que mandava nesse destacamento de 250 homens solicitou a companhia de navegação o empréstimo de um balsa de grãos, dessas de metal pesado que sobem e descem pra lá e pra cá como o senhor mesmo viu mais cedo,  botou os soldado tudo em cima, equipou uma metralhadora Nordenfelt e partiram pra cima da serpente do mesmo jeito que o governo parte pra cima do pobre, o que ninguém sabia e nesse dia se descobriu é que a serpente além de soltar fogo pelos olhos também some e des-some na hora que bem quer e entende, desaparecendo na frente da embarcação e reaparecendo atrás, veja bem, atrás, mandou fogo dos olhos na balsa e assou vivos os 250 homens do exército, ah mas foi um deus nos acuda, se foi, e o senhor acha que um negócio desse vai sair no jornal? Em livro de história? Isso tudo foi omitido, encobertado, e quem falava sobre isso sumia que ninguém mais via. Como foi que prenderam a cobra? Pois veja o senhor que a solução veio por intermédio divino, um andarilho que apareceu por aqui, e sentou-se de frente a catedral e jejuou 30 dia e 30 noites pedindo a nossa senhora que pelo amor do pai do filho e do espírito santo, tocasse no coração da fera, que libertasse seu povo desse sinistro, que se o povo não comia ele também não ia comer e que ia morrer ali e o povo chorava vendo o esforço do homem morrendo a míngua pra salvar os outros e foi nessa hora que a santa apareceu e disse ao andarilho “tomai, estes fios do meu cabelo e com eles prenderás a serpente mas lembras, a serpente é o pecado de toda a gente” e o homem ficou renovado como se tivesse dormido, como se tivesse comido ou nem fome tivesse passado e pulou no rio e a serpente veio como se fosse bicho ensinado, e o povo todo viu, todo mundo abismado, o homem montado nela desfilando no rio, foram pra ilha e lá mergulharam nessa caverna secreta que é a  toca do bicho, o homem prendeu a serpente com os três fios que lhe foram dados, como o lugar é muito profundo ninguém sabe se o andarilho viveu, o corpo também nunca foi encontrando,  e o que se conta hoje é que dois fios se partiram, e esse um que resta já anda gasto, o que é um perigo o senhor imagine, esse monstro solto  quebrando as barragens inundando cidades tocando fogo em plantação de uvas, vixe, eu só não quero estar aqui pra ver, se eu acredito? Nem acredito nem desacredito, mas eu conto, que é pro povo não esquecer, já imaginou a gente viver este tanto de vida e não ter nada pra contar do que nasce da imaginação? Nada! O senhor não paga nada não, imagine, eu que lhe agradeço.”

 

Trecho do Auto do senhor do sol, de João Gilberto Guimarães Sobrinho

(O auto do senhor do sol é uma obra de ficção que mistura elementos e fatos históricos e não tem nenhum compromisso com a realidade.)

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