Uma vez por ano, à meia noite, o rio descansa, as águas param de correr e os peixes. Silenciosos,dormem no leito fundo, é quando as almas dos afogados emergem faz águas buscando no céu noturno o brilho das estrelas distantes. No espelho d’água do São Francisco, onde o tempo se arrasta como as águas mansas em dia de calmaria, as carrancas vigiam. São sentinelas de madeira, com olhos arregalados e bocas escancaradas, presas à proa das barcas como se pudessem, num grito feroz, espantar o azar, o mal, e as sombras do rio.
Os antigos diziam que as carrancas gemiam. Três lamentos tristes cortavam o ar quando um barco estava prestes a afundar. Era o aviso do além, um presságio que poucos ousavam ignorar. E havia uma regra sagrada: uma vez fixada na embarcação, a carranca não podia ser movida. Seu lugar era definitivo, como o destino de quem se lançava ao rio. Diziam ainda que ela não era apenas guardiã; servia também como uma identificação da propriedade da barca, uma assinatura esculpida em madeira bruta, que assinalava na distância a embarcação que se aproximava das margens.
São muitas as curiosidades sobre as carrancas do São Francisco. As mais antigas assumiam formas zoomorfas e antropomorfas misturando rosto de gente e animais da fauna regional, eram chamadas de Figuras de proa. As carrancas propriamente ditas, como as conhecemos hoje, surgiram no final do século XIX e foram difundidas principalmente pela arte do mestre Francisco Biquiba de La Fuente, baiano da cidade de Santa Maria da Vitória.
Há também uma crença de que fazer uma carranca era algo perigoso. Sendo uma entidade poderosa que espantava espíritos e maus agouros, a madeira enfeitiçada poderia acabar passando o feitiço para quem a esculpia. Para se proteger, o artesão colocava no pescoço um colar de chifres e, num dedo da mão esquerda, um anel de madeira. Esses elementos, segundo a crendice popular, possuíam poderes sobrenaturais. Uma vez adornado com essa indumentária, iniciava-se o trabalho de entalhe da carranca.
No passado, houve até quem inventasse que as carrancas eram uma herança fenícia, resquícios de um passado marítimo perdido nas correntezas da história. Mas a explicação mais plausível nos leva para além das águas do Velho Chico, até o mar da capital, Salvador. Paulo Pardal, estudioso das carrancas do São Francisco, nos diz que, talvez esses elementos tenham sido trazidos da capital,inspirados nos mascarões das grandes embarcações que atracavam, e uma vez vistos por lá, chegaram aos barqueiros e canoeiros que assim forjaram suas próprias sentinelas fluviais, adaptadas às crenças e medos da vida ribeirinha.
Hoje, as carrancas não cortam mais o rio com a mesma força e presença de antes. Ficaram no imaginário e nos ateliês dos artistas, penduradas nas paredes como lembrança de um tempo em que eram mais do que arte: eram escudo contra o desconhecido, olhos vigilantes que encaravam as águas escuras do São Francisco e protegiam aqueles que se atreviam a navegar por elas.
Muito embora tenham perdido a força folclórica que marcaram a minha infância e a de muitos juazeirenses, as carrancas ainda sobrevivem no nosso imaginário e no nosso artesanato, quem duvida pode conhecer a maior carranca do mundo, esculpida pelo carranqueiro Flávio Motta, está exposta ao lado da casa do artesão na orla de Juazeiro. Outros desdobramentos podem também ser observados na arte do artista plástico Alex Moreira que criou sua própria técnica e estilo decarrancas queimadas, um refinamento estético que ressignifica o olhar sobre as carrancas, igualmente singular é a técnica da artista Carina Lacerda que inventou e tem disseminado com sucesso as “Carrancas de peito”, harmonizando ainda mais as formas femininas tão predominantes na secular arte carranqueira.
João Gilberto Guimarães, é cientista social formado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco, pesquisador das políticas públicas de cultura, poeta, editor e fundador da editora CLAE, também escreve para o teatro, em parceria com o ator Elder Ferrari ganhou em 2020, o prêmio Respirarte da Fundação nacional das artes (FUNARTE), com o espetáculo Quebranto.
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