“Tia Lucinha: um conto sobre a arte de morrer” por João Gilberto Guimarães

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Foto: Jean Correa

Tia Lucinha era um espeto de gente. Magra, baixinha, com as pernas tortas feito galho de imburana, parecia ter sido desenhada por uma criança revoltada. Professora aposentada, dava aula de português e tirava ponto de aluno que errava a conjugação do verbo “obstar”. Vivia embuchada em vestidos florais com fundo bege, sempre bege, como se já estivesse há anos se preparando para o próprio velório.

Seu rosto era uma obra de maquiagem tosca: pó compacto três tons acima da cor da pele, batom vermelho borrado que escapava da linha da boca e um blush que parecia ter sido aplicado com um tapa. Diziam que ela se maquiava com raiva, e fazia sentido: até a sombra do olho parecia levada na pancada.

Apesar da aparência de senhora cristã, dessas que ajeitam os bancos da igreja e cochicham o terço entre uma novena e outra, Tia Lucinha tinha um vício secreto — ou quase secreto: fumava escondido. Escolhia as esquinas mais mal iluminadas de Juazeiro para dar suas tragadas silenciosas, como quem participa de um ritual sagrado.

Só que seu maior inimigo nessa empreitada era o sobrinho traquino, o pequeno Nicolau, um menino de sete anos que parecia ter sido parido pelo próprio diabo só pra perturbar a paz da tia.

— TE PEGUEI, VÉIA FUMANTE! — gritava ele, pulando de trás de uma árvore.

Tia Lucinha quase engasgava com a fumaça.

— VÁ PRA CASA, SEU INFANTE MALDITO! — ela berrava, batendo com a bolsa de palha no ar, como quem exorciza um demônio risonho.

Nicolau ria, fugia, e no outro dia voltava com uma câmera de brinquedo, fingindo ser repórter do “Fantástico da Vergonha Alheia”, pronto para flagrar a tia com um cigarro entre os dedos ossudos.

— Mais um furo de reportagem, Dona Lucinha! — dizia ele, clicando com a boca: clic clic clic.

Tia Lucinha não era propriamente simpática. Xingava muito, o tempo todo. Chamava os vizinhos de “bando de amaldiçoados”, os padres de “comédia de batina” e os pastores de “pirotecnia gospel”. Mas ninguém duvidava de sua fé. Carpideira de mão cheia, chorava como se estivesse no velório da própria alma em qualquer enterro que aparecesse. Nem precisava conhecer o defunto. Bastava um convite ou uma notícia pela boca de algum beato e lá estava ela, de preto, rosário na mão e lágrimas prontas.

— Tia, a senhora nem conhece a dona que morreu — disse uma vez Nicolau, curioso.

— E tu acha que ela vai conhecer quem foi no meu, criatura? Tô só pagando adiantado — respondeu com seriedade fúnebre.

Essa era sua lógica: quanto mais enterros ela frequentasse, maior a chance de ter um bom público no dela. Guardava até uma cadernetinha onde anotava os nomes dos velados e, ao lado, riscava: Presente. Chorei muito. ou Presente. Lágrimas médias.

Às vezes, nos enterros mais vazios, ela chorava dobrado. Uma vez caiu de joelhos, berrando feito estrela mexicana, por um homem que tinha sido seu vizinho por dois meses e só falava com ela para reclamar da fumaça do cigarro.

— Vai ver que o coitado tava certo, e ela quis pedir desculpa de última hora — comentou uma velha, admirada com a performance.

Mas por baixo da rabugice, dos xingamentos e da nuvem constante de fumaça, existia uma afeição profunda por Nicolau. Ela nunca disse “eu te amo”, mas o menino sabia. Sabia porque ela sempre deixava um pedaço do bolo de milho escondido pra ele, ou porque defendia o pirralho até do padre, que vivia dizendo que Nicolau precisava de exorcismo.

— Ele é só esperto. O mundo é que é burro — dizia, acendendo outro cigarro.

Foi num sábado abafado que Tia Lucinha não apareceu pra missa.

Nem pra o velório de Nivaldo do Armarinho, que ela odiava, mas com quem mantinha o compromisso de chorar mesmo assim.

A cidade estranhou. Nicolau estranhou. Arrombaram a porta da casa dela e a encontraram deitada, maquiada, com um cigarro apagado na mão e um sorriso estranho no canto da boca, como se tivesse morrido no meio de uma piada ruim.

No enterro de Tia Lucinha, só foram três pessoas: o coveiro, Nicolau e Dona Zefa, uma fofoqueira que foi só pra ver se era verdade.

O padre fez a reza sem entusiasmo, e Nicolau, já com nove anos, colocou discretamente uma flor de plástico sobre o caixão.

— A senhora exagerou na maquiagem até morta, hein? — sussurrou, tentando engolir um riso e uma lágrima ao mesmo tempo.

Dona Zefa, ao lado, murmurou:

— Tanta carpideira, e morre no silêncio. Tá vendo aí?

Mas Nicolau sabia que aquilo não era silêncio. Sabia que, em algum lugar além, Tia Lucinha estava soltando fumaça e palavrão, xingando os ausentes com gosto:

— Bando de filha da p…! Quando era enterro dos outros, eu tava lá! Com chuva, com sol, com ressaca, com a cara suada e o cigarro escondido no sutiã! E agora? Nem uma desmaiada? Nem uma lágrima de catarro?! Vá se lascar, Juazeiro!

E assim, entre xingamentos espirituais e o silêncio físico das flores murchas, Tia Lucinha finalmente teve seu descanso eterno. Sem plateia, mas com dignidade. E, pra ela, talvez fosse até melhor assim.

Menos gente pra errar a conjugação do verbo “haver” na lápide.


Por João Gilberto Guimarães Sobrinho

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