“Parlim, 70 anos: o homem que ensinou Juazeiro a brincar”, por Ally Viana

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Memória, infância, política e invenção: uma crônica-perfil do homem que fez da cultura popular uma trincheira de beleza em Juazeiro.

Na calçada em frente à escola, crianças de chinelo e uniforme esperavam por algo que não sabiam explicar. O som vinha primeiro: um barulho de motor adaptado, trilha infantil nos alto-falantes e a cor vermelha cortando a poeira da rua. Depois, ele surgia inteiro: o Trenzinho da Alegria, também conhecido como Trenzinho Pirlimpimpim, nome pintado na lataria com letras infantis e vibrantes.

Tinha carrocerias abertas, chaminé cenográfica, bancos de madeira cobertos por toldos laranjas. As laterais, ilustradas à mão com personagens de desenhos animados, carregavam mais do que tinta: eram traços vivos de Parlim, que sabia o que era fazer beleza com pouco. Um brinquedo urbano improvisado, movido por criatividade e vontade de festa.

Não era ele quem dirigia. Mas era ele quem fazia o trem existir.

Parlim não assistia à infância: ele a alimentava. Sentava no chão com as crianças para ensinar a fazer pipa, organizava oficinas de arte com cartolina reaproveitada, produzia gibis sobre lampião, cuidava da brinquedoteca como quem cuida de uma casa. Criava porque sabia que a imaginação era um direito e, mais do que isso, um território político.

Na orla de Juazeiro, entre barracas e bonecos gigantes, ajudou a erguer o bloco Pirlimpimpim, onde o carnaval era feito de papel crepom, serpentina e batuque de criança. A festa não estava só na rua: estava nas escolas, nos bastidores, nas mãos que passavam cola nas máscaras e colavam também os pedaços do mundo.

Nos anos 1980, participou da fundação do jornal alternativo O Berro d’Água, publicação cultural independente surgida no respiro pós-ditadura. Não era jornalista de formação, mas era cronista de rua, agitador gráfico, voz de beco e praça. Mantinha um blog, publicava livros artesanais, escrevia reportagens à mão, registrava Juazeiro por todos os ângulos da beira do São Francisco ao centro cultural improvisado de qualquer sala de aula.

Nos eventos da cidade, era impossível não reconhecê-lo: cabelos brancos com leves fios pretos insistentes, barba por fazer, sobrancelhas falhadas, boné cinza e uma câmera rosa nas mãos. A câmera não era profissional. Mas ele a carregava com a mesma solenidade de um cinegrafista de rede nacional. Fotografava capoeiras, ensaios, encontros. Subia em cadeiras, abaixava, pedia licença, se metia. Comunicava com o que tinha.

Uma vez, no quintal de casa, me ensinou que, para a pipa levantar voo, a gente tinha que assoviar para chamar o vento. Era dia sem brisa. Ele segurou a linha e correu. Correu como quem acredita no que ainda não chegou. E a pipa subiu.

Parlim não virou nome de rua.

Virou vento.

E toda vez que uma pipa sobe, tenho certeza de que é ele soprando por trás.

Hoje, muita gente conhece Juazeiro pelas vinhas, pelas margens, pelo progresso. Mas eu conheço pelos olhos dele. E, nos olhos dele, Juazeiro era outra coisa: um espaço onde brincar era um direito, onde ler era uma travessia, onde existir com criatividade era resistência.
Ensinava arte sem chamar de arte. Chamava de vida.

Sabia que cultura não é apenas um quadro na parede de um museu, mas também uma criança com cola branca nos dedos, um professor que desenha no quadro com lápis de cera, um jornal feito à unha na sala de casa.
Fez trenzinho porque acreditava no brincar como direito.

Criou gibis sobre Lampião, Nego d’Água, lendas e memórias de Juazeiro.

O que dava, como dava, com o que tinha: e com o que sonhava também.

Cresci entre a lembrança dele e o silêncio que veio depois. Entre o mundo que ele me apresentou, de liberdade, arte, justiça e um outro mundo que queria que eu esquecesse tudo isso. Mas talvez, sem saber, eu tenha passado os últimos anos tentando reencontrá-lo.

Faz dez anos que ele se foi. Eu tinha 15. E ainda assim, continuo conhecendo meu pai. O tempo inteiro. Ele se espalha pela cidade, apesar da ausência que tudo ocupa.

Hoje faço jornalismo. E às vezes me pergunto se um dia serei capaz de escrever um texto com a mesma sensibilidade com que ele montava uma pipa.

Parlim era meu pai.

E hoje, ele completaria setenta anos.

Ally Viana, estudante de jornalismo

2 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pela belíssima homenagem.
    Parlim é mais do que merecedor de todas as honrarias que Juazeiro possa lhe prestar.
    Tive a honra de conhecê-lo e, a alegria de poder apresentá-lo às minhas filhas, que de tanto admira-lo,o chamavam de “tio Parlim” e,para aqueles que o conheceram,o amaram e reconhecem o seu talento e valor, Parlim vive em nossa memória e em nossos corações!

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